segunda-feira, 18 de novembro de 2019

O Poeta-Coração


Não conheci Firmino Rocha. O destino não o quis. Digo que não o conheci, mas o mais correto seria dizer que jamais pude me deparar com seu rosto sóbrio de verdades esquecidas; nunca lhe toquei os dedos suados num fim de tarde em Itabuna; nunca pude ouvir sua voz que se erguia como rumor nos ares grapiúnas. Ao contrário do que afirmei, sim, conheço Firmino Rocha, porque vivemos o mesmo tempo. Somos contemporâneos, assim acredito, pois vivemos o afeto e o coração por meio da ingenuidade mística da criança. Comungamos a fraternidade que só a delicadeza do poema pode despertar. Irmãos! Assim o quero e assim o aprecio! Como o Juan Gelman enunciado por Galeano, olho para homens e mulheres ao meu redor e não vejo contemporâneos. Mas lá está, nisto que chamamos passado, a beleza intemporal do lirismo de Firmino, graça que me abraça e me faz viver, orienta-me ao poema.
Agora, quando finalmente me pego pensando sobre como desenvolver este pequeno escrito, lembro-me de tudo o que compôs Firmino em minha história até que sua poesia se fizesse forte, insuportavelmente forte em meu coração, para fazê-la ecoar por mim mesmo. Veio-me a lembrança do primeiro canto, do seu primeiro canto a contagiar meus ouvidos: Deram um fuzil ao menino. Os anos em que o mistério de suas cenas, a força imagética de seus versos, os cultos silenciosos ao íntimo, ao hábito microscópico, ressoaram sem cessar em meio ao caos de meu temperamento. Estive sozinho neste seu canto, e assim se passaram os meses e se fizeram anos, tempo suficiente para que meu próprio espírito estivesse disposto a caminhar ao lado da poesia.
Comprei um livro. Vivi a trajetória lenta, paciente, de sentir seus encantos, de rememorar suas lembranças, de lamentar suas tristezas, de me apiedar de seus desencontros, de me extasiar com suas ilusões. Lê-se Firmino Rocha em doses, num ritmo sereno, numa intensidade crua de quem aprende vagarosamente a amar a vida. Ler sua poesia é se desfazer de qualquer regresso, é se dispor a cantar a eterna novidade das lembranças. Só é possível sentir o ímpeto de seus versos na medida em que cada um deles passa a tratar de quem os lê. Só é possível comungar do afeto calmo de Firmino, quando nos permitimos provar das ternuras dos nossos corações de menino. É preciso ver através da poesia. Vejo, portanto, através das lentes que são minhas mãos, e vivo no poema o gérmen lírico da realidade.
Na poesia amorosa e simples deste itabunense, vislumbrei purezas impensáveis. Na sua ode ao amanhã, O canto do dia novo, a primavera que nascerá encontra as flores mais distintas. Nunca havia visto uma ternura tão genuína. Nunca havia sido tomado por sentimento tão sincero e primordial como por meio das palavras misteriosas deste homem que foi e é muito mais do que meramente homem: coisa do amor, sábio, mensageiro, místico, poeta. O destino o quis. Coração grande demais para o presente, este tempo que nada é. Radical oposto: tempo que nunca passou… tempo do amor. Eis o que é, como joia mais rara e bruta, o íntimo de Firmino Rocha. Oposição total ao tempo como progresso, porque uma entrega total ao tempo como afeto. E neste mundo de puro afeto ainda vive o poeta, e nunca morrerá, assim como não morre o poema. E só lá podemos o encontrar, aberto à visita dos sensíveis, dos que se enternecem, dos que compreendem a magnitude da espera pela palavra imersa em total silêncio. Firmino Rocha ainda fala aos que ouvem os murmúrios gentis que se velam na mudez aparente do mundo. Ele toca e aquece o peito de quem muito ama, ainda que em solidão. Não estamos sozinhos, não estamos sozinhos. E talvez a sua poesia - um erro, a poesia não se detém -, talvez a poesia que por ele nasceu, seja ainda capaz de se tornar caminho e destino para quem assim a pressinta profundamente.

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Não se examina a bela rosa do jardim. Ela definha quando a cortamos o caule para investigar qualquer banalidade exigida por nosso intelecto. A mesquinhez do erudito é invasiva, irresponsável e mortificante quando se debruça sobre a graciosidade das coisas simples. O sábio, por sua vez, já venceu a rudeza do espírito. Alma mais que tudo, conserva a excelência do bem viver. Aquela rosa é Firmino e também este sábio. Em 1968, um colunista chamado Adroaldo Ribeiro Costa escreveu num jornal sul-baiano: “Muito obrigado, Firmino. Não analiso a sua poesia, não. Para que? Quando encontro uma linda flor não cogito de classificá-la: enlevo-me com sua beleza e seu perfume. Só”. Enlevando-nos pelo canto de Firmino compreendemos um pouco sobre a pureza, sobre a harmonia, mas também sobre a enorme e grave tristeza da vida, pois seu poema é “marcado pelo sofrimento e pelos densos efeitos de entre tons de sombra e luz de sua alma atormentada”, como escreveu Bartholomeu Brandão no preâmbulo de Momentos: Prosa e Canto. Há ainda de se ressaltar o valor literário, além do sentimental e extático, da obra do poeta grapiúna, alteada por um dos grandes críticos do século XX, Otto Maria Carpeaux, o qual, ao ler alguns dos poemas de Firmino, sentenciou: “Lorca assinaria estes versos”.
Pela inspiração e pela lisonja que se aviva em fabulações nascidas da pequenez sul-baiana, surge um sentimento lírico, fantástico, em que o messianismo ganha corpo e faz pensar na estranheza e misteriosidade desta terra grapiúna. O que dizer de Ruy Póvoas, alguém que, pensando na fisionomia espiritual itabunense, perguntou-se como haveria de ser se, ao invés de Itabuna, fosse sua terra a Grécia?: “Certamente, fosse aqui a Grécia e Firmino Rocha seria Homero. Pelo menos, uma Ilíada ele construiu: Deram um fuzil ao menino”. Elevemo-nos a este pensamento! Fosse Firmino Rocha o Homero baiano, de qual Ocidente seria o pai? Quais Antiguidades, quais Peloponesos, quais Cristos, Inquisições, Navegações, Iluminismos, Romantismos e Ciências se despertariam a partir da flama e do ensejo completamente amorosos que brilham pelo coração de Firmino? Quais guerras, quais ódios, infâmias, traições, mágoas e desesperos se decantariam ao sentir a aurora singela renascida por seus versos? A extrema ingenuidade do que escrevo me assombra. Jamais poderia ser Firmino o pai de Ocidente algum, pois nenhum Ocidente trágico é suficiente para marejar os olhos dos homens, nem para entoar os cantos do poeta! Nenhum tempo se iguala ao corte místico da intemporalidade sagrada que resguarda a Amada, flor eterna que desabrocha na primavera do porvir. Tempo algum contém a ternura que se interpassa infinitamente pelos solitários, e que nos beija os lábios quando choramos, e que nos toma as mãos quando caímos.

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Firmino Rocha faz lembrar das extremas minúcias do cotidiano. Remete-nos aos risos da brincadeira de roda, aos afagos consoladores dos amantes, às cores que reivindicam o mundo quando surge, enfim, o crepúsculo. Uma jovem mãe entra no coletivo com seu filho ao colo. Ultrapassa a catraca e o balanço do ônibus desperta a criança: olhar de infinita brandura, a pequena cabeça contra seus seios, mão calorosa sobre a face minúscula. Zelo total, a paz se estabelece em uma afinação silente. Sorriso de absoluto contentamento. Ali está Firmino, todo doçura, a lhes contemplar o carinho e a bendizer a aurora que os conduziu ao amor. Ele abraça ali a todos: aos pares que de repente se dão as mãos, aos amigos que se reencontram e já não suportam a saudade, aos sensíveis que lamentam os sofrimentos do mundo, aos simples que agradecem humildemente, aos desesperados que se exasperam, aos justos que se indignam. Maravilhoso é o templo que se abre para essa poesia das brevidades, coisa que denuncia o sentimento transversal e solidário da afabilidade.
É o Poeta-Coração! O canto do dia novo não é apenas um livro de poemas, é um conjunto de ensinamentos, de mensagens que se encaminham ininterruptamente ao amanhã. Um destes grandes ensinamentos é explícito: Marca a palavra com a lágrima do Amor. “Poeta,/ marca a palavra com a lágrima do Amor/ E segue o teu caminho/ Serenamente./ Serenamente./ Verás como é verdade, pura verdade, a tua mensagem./ Verás como virão ao teu encontro as flores mais belas, as flores mais humildes./ Verás como se deixarão descobrir as fontes mais castas./ Quantas estrelas nascerão na tua noite!/ Quantas canções escutarás do teu silêncio!/ Poeta,/ Marca a palavra com a marca da tua Alegria./ E sorri para teu irmão./ E espera a tua amada./ E canta teu Poema”. Novamente como sábio, Firmino Rocha compreende e transmite a mensagem pela mais pura auscultação. Ele entende e orienta à paciência, à calma, à serenidade lírica, ao silêncio, à mais bela espera. “Não acordar a palavra./ Deixar que ela sinta no silêncio/ os frêmitos de todos os mistérios/ Até o último instante./ Nova e virgem então ela virá/ e ao poema dará seiva e fervor./ Não acordar a palavra./ Deixar que ela durma no silêncio/ o seu fecundo sono./ Até que como o sol desperte/ e descubra as coisas/ e nada deixe em escuridão e frio./ O poema então será verdade,/ amor e caminho”. Na madrugada se manter vigil, resistir à solidão máxima da escuridão, até que enfim a palavra surja em meio à fulguração total da aurora. “Ouvir o canto da madrugada/ O canto suavíssimo do caricioso silêncio/ e das mensagens do sono das coisas escondidas./ O canto prenhe de pureza/ das águas encobertas/ e das emudecidas ramagens/ O canto de Deus./ Ouvir o canto imenso,/ o canto eterno da madrugada./ E tudo amar”.
Firmino é um gesto de amor para a poesia baiana, é um acalanto de extrema ternura que nos faz desejar a bondade. E o que é a bondade? Não, que pergunta fria… o intelecto sempre insiste em reclamar a autoridade. Sinto a bondade pela comunhão com o amigo. Sinto o afago das carícias sutis de meus irmãos. Sinto a gentileza de um raio do sol que se esforça em iluminar a terra fria pela manhã. Sinto a chuva a nos amparar delicadamente em um momento de introspecção. Sinto a força daquela senhora que trabalha, ainda que com dificuldade. Sinto o sussurro daquele jovem que se decompõe em incertezas. Sinto o calor de um dia de sol e o que se emana do povo belo que me circunda. Sinto o afeto do generoso e a solidão do poeta. Sinto a maré que se quebra sem jamais se deter… e sei que isso é bondade. Firmino Rocha é o simples que denuncia em sua singeleza a coisa cotidiana do amor bondoso. E nos provoca, e nos incita a o admirar. Quero, como ele, toda esta poesia que nasceu com o mundo! Quero também tocar o tecido macio e íntimo que sustenta os sentimentos do porvir! Quero, também eu, tudo amar! Que Firmino, de poesia, torne-se tempestade, e desperte a chuva mais amorosa para inundar os corações de todos. Que lave a maldade a nos ocultar os sonhos. Que se faça, aos amantes, caminho e destino!

Salvador, 31/10/2019.

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