Não conheci Firmino Rocha. O destino não o quis. Digo que
não o conheci, mas o mais correto seria dizer que jamais pude me deparar com
seu rosto sóbrio de verdades esquecidas; nunca lhe toquei os dedos suados num
fim de tarde em Itabuna; nunca pude ouvir sua voz que se erguia como rumor nos
ares grapiúnas. Ao contrário do que afirmei, sim, conheço Firmino Rocha, porque
vivemos o mesmo tempo. Somos contemporâneos, assim acredito, pois vivemos o
afeto e o coração por meio da ingenuidade mística da criança. Comungamos a
fraternidade que só a delicadeza do poema pode despertar. Irmãos! Assim o quero
e assim o aprecio! Como o Juan Gelman enunciado por Galeano, olho para homens e
mulheres ao meu redor e não vejo contemporâneos. Mas lá está, nisto que
chamamos passado, a beleza intemporal do lirismo de Firmino, graça que me
abraça e me faz viver, orienta-me ao poema.
Agora, quando finalmente me pego pensando sobre como
desenvolver este pequeno escrito, lembro-me de tudo o que compôs Firmino em
minha história até que sua poesia se fizesse forte, insuportavelmente forte em
meu coração, para fazê-la ecoar por mim mesmo. Veio-me a lembrança do primeiro
canto, do seu primeiro canto a contagiar meus ouvidos: Deram um fuzil ao
menino. Os anos em que o mistério de suas cenas, a força imagética de seus
versos, os cultos silenciosos ao íntimo, ao hábito microscópico, ressoaram sem
cessar em meio ao caos de meu temperamento. Estive sozinho neste seu canto, e
assim se passaram os meses e se fizeram anos, tempo suficiente para que meu
próprio espírito estivesse disposto a caminhar ao lado da poesia.
Comprei um livro. Vivi a trajetória lenta, paciente, de sentir seus encantos, de rememorar suas lembranças, de lamentar suas tristezas, de me apiedar de seus desencontros, de me extasiar com suas ilusões. Lê-se Firmino Rocha em doses, num ritmo sereno, numa intensidade crua de quem aprende vagarosamente a amar a vida. Ler sua poesia é se desfazer de qualquer regresso, é se dispor a cantar a eterna novidade das lembranças. Só é possível sentir o ímpeto de seus versos na medida em que cada um deles passa a tratar de quem os lê. Só é possível comungar do afeto calmo de Firmino, quando nos permitimos provar das ternuras dos nossos corações de menino. É preciso ver através da poesia. Vejo, portanto, através das lentes que são minhas mãos, e vivo no poema o gérmen lírico da realidade.
Comprei um livro. Vivi a trajetória lenta, paciente, de sentir seus encantos, de rememorar suas lembranças, de lamentar suas tristezas, de me apiedar de seus desencontros, de me extasiar com suas ilusões. Lê-se Firmino Rocha em doses, num ritmo sereno, numa intensidade crua de quem aprende vagarosamente a amar a vida. Ler sua poesia é se desfazer de qualquer regresso, é se dispor a cantar a eterna novidade das lembranças. Só é possível sentir o ímpeto de seus versos na medida em que cada um deles passa a tratar de quem os lê. Só é possível comungar do afeto calmo de Firmino, quando nos permitimos provar das ternuras dos nossos corações de menino. É preciso ver através da poesia. Vejo, portanto, através das lentes que são minhas mãos, e vivo no poema o gérmen lírico da realidade.
Na poesia amorosa e simples deste itabunense, vislumbrei
purezas impensáveis. Na sua ode ao amanhã, O canto do dia novo, a primavera que
nascerá encontra as flores mais distintas. Nunca havia visto uma ternura tão
genuína. Nunca havia sido tomado por sentimento tão sincero e primordial como
por meio das palavras misteriosas deste homem que foi e é muito mais do que
meramente homem: coisa do amor, sábio, mensageiro, místico, poeta. O destino o
quis. Coração grande demais para o presente, este tempo que nada é. Radical
oposto: tempo que nunca passou… tempo do amor. Eis o que é, como joia mais rara
e bruta, o íntimo de Firmino Rocha. Oposição total ao tempo como progresso,
porque uma entrega total ao tempo como afeto. E neste mundo de puro afeto ainda
vive o poeta, e nunca morrerá, assim como não morre o poema. E só lá podemos o
encontrar, aberto à visita dos sensíveis, dos que se enternecem, dos que
compreendem a magnitude da espera pela palavra imersa em total silêncio.
Firmino Rocha ainda fala aos que ouvem os murmúrios gentis que se velam na
mudez aparente do mundo. Ele toca e aquece o peito de quem muito ama, ainda que
em solidão. Não estamos sozinhos, não estamos sozinhos. E talvez a sua poesia -
um erro, a poesia não se detém -, talvez a poesia que por ele nasceu, seja
ainda capaz de se tornar caminho e destino para quem assim a pressinta
profundamente.
***
Não se examina a bela rosa do jardim. Ela definha quando a
cortamos o caule para investigar qualquer banalidade exigida por nosso
intelecto. A mesquinhez do erudito é invasiva, irresponsável e mortificante
quando se debruça sobre a graciosidade das coisas simples. O sábio, por sua
vez, já venceu a rudeza do espírito. Alma mais que tudo, conserva a excelência
do bem viver. Aquela rosa é Firmino e também este sábio. Em 1968, um colunista
chamado Adroaldo Ribeiro Costa escreveu num jornal sul-baiano: “Muito obrigado,
Firmino. Não analiso a sua poesia, não. Para que? Quando encontro uma linda
flor não cogito de classificá-la: enlevo-me com sua beleza e seu perfume. Só”.
Enlevando-nos pelo canto de Firmino compreendemos um pouco sobre a pureza,
sobre a harmonia, mas também sobre a enorme e grave tristeza da vida, pois seu
poema é “marcado pelo sofrimento e pelos densos efeitos de entre tons de sombra
e luz de sua alma atormentada”, como escreveu Bartholomeu Brandão no preâmbulo
de Momentos: Prosa e Canto. Há ainda de se ressaltar o valor literário, além do
sentimental e extático, da obra do poeta grapiúna, alteada por um dos grandes
críticos do século XX, Otto Maria Carpeaux, o qual, ao ler alguns dos poemas de
Firmino, sentenciou: “Lorca assinaria estes versos”.
Pela inspiração e pela lisonja que se aviva em fabulações
nascidas da pequenez sul-baiana, surge um sentimento lírico, fantástico, em que
o messianismo ganha corpo e faz pensar na estranheza e misteriosidade desta
terra grapiúna. O que dizer de Ruy Póvoas, alguém que, pensando na fisionomia
espiritual itabunense, perguntou-se como haveria de ser se, ao invés de
Itabuna, fosse sua terra a Grécia?: “Certamente, fosse aqui a Grécia e Firmino
Rocha seria Homero. Pelo menos, uma Ilíada ele construiu: Deram um fuzil ao
menino”. Elevemo-nos a este pensamento! Fosse Firmino Rocha o Homero baiano, de
qual Ocidente seria o pai? Quais Antiguidades, quais Peloponesos, quais
Cristos, Inquisições, Navegações, Iluminismos, Romantismos e Ciências se
despertariam a partir da flama e do ensejo completamente amorosos que brilham
pelo coração de Firmino? Quais guerras, quais ódios, infâmias, traições, mágoas
e desesperos se decantariam ao sentir a aurora singela renascida por seus
versos? A extrema ingenuidade do que escrevo me assombra. Jamais poderia ser
Firmino o pai de Ocidente algum, pois nenhum Ocidente trágico é suficiente para
marejar os olhos dos homens, nem para entoar os cantos do poeta! Nenhum tempo
se iguala ao corte místico da intemporalidade sagrada que resguarda a Amada,
flor eterna que desabrocha na primavera do porvir. Tempo algum contém a ternura
que se interpassa infinitamente pelos solitários, e que nos beija os lábios
quando choramos, e que nos toma as mãos quando caímos.
***
Firmino Rocha faz lembrar das extremas minúcias do
cotidiano. Remete-nos aos risos da brincadeira de roda, aos afagos consoladores
dos amantes, às cores que reivindicam o mundo quando surge, enfim, o
crepúsculo. Uma jovem mãe entra no coletivo com seu filho ao colo. Ultrapassa a
catraca e o balanço do ônibus desperta a criança: olhar de infinita brandura, a
pequena cabeça contra seus seios, mão calorosa sobre a face minúscula. Zelo
total, a paz se estabelece em uma afinação silente. Sorriso de absoluto
contentamento. Ali está Firmino, todo doçura, a lhes contemplar o carinho e a
bendizer a aurora que os conduziu ao amor. Ele abraça ali a todos: aos pares
que de repente se dão as mãos, aos amigos que se reencontram e já não suportam
a saudade, aos sensíveis que lamentam os sofrimentos do mundo, aos simples que
agradecem humildemente, aos desesperados que se exasperam, aos justos que se
indignam. Maravilhoso é o templo que se abre para essa poesia das brevidades,
coisa que denuncia o sentimento transversal e solidário da afabilidade.
É o Poeta-Coração! O canto do dia novo não é apenas um livro
de poemas, é um conjunto de ensinamentos, de mensagens que se encaminham
ininterruptamente ao amanhã. Um destes grandes ensinamentos é explícito: Marca
a palavra com a lágrima do Amor. “Poeta,/ marca a palavra com a lágrima do
Amor/ E segue o teu caminho/ Serenamente./ Serenamente./ Verás como é verdade,
pura verdade, a tua mensagem./ Verás como virão ao teu encontro as flores mais
belas, as flores mais humildes./ Verás como se deixarão descobrir as fontes
mais castas./ Quantas estrelas nascerão na tua noite!/ Quantas canções
escutarás do teu silêncio!/ Poeta,/ Marca a palavra com a marca da tua
Alegria./ E sorri para teu irmão./ E espera a tua amada./ E canta teu Poema”.
Novamente como sábio, Firmino Rocha compreende e transmite a mensagem pela mais
pura auscultação. Ele entende e orienta à paciência, à calma, à serenidade
lírica, ao silêncio, à mais bela espera. “Não acordar a palavra./ Deixar que
ela sinta no silêncio/ os frêmitos de todos os mistérios/ Até o último
instante./ Nova e virgem então ela virá/ e ao poema dará seiva e fervor./ Não
acordar a palavra./ Deixar que ela durma no silêncio/ o seu fecundo sono./ Até
que como o sol desperte/ e descubra as coisas/ e nada deixe em escuridão e
frio./ O poema então será verdade,/ amor e caminho”. Na madrugada se manter
vigil, resistir à solidão máxima da escuridão, até que enfim a palavra surja em
meio à fulguração total da aurora. “Ouvir o canto da madrugada/ O canto
suavíssimo do caricioso silêncio/ e das mensagens do sono das coisas
escondidas./ O canto prenhe de pureza/ das águas encobertas/ e das emudecidas
ramagens/ O canto de Deus./ Ouvir o canto imenso,/ o canto eterno da
madrugada./ E tudo amar”.
Firmino é um gesto de amor para a poesia baiana, é um
acalanto de extrema ternura que nos faz desejar a bondade. E o que é a bondade?
Não, que pergunta fria… o intelecto sempre insiste em reclamar a autoridade.
Sinto a bondade pela comunhão com o amigo. Sinto o afago das carícias sutis de
meus irmãos. Sinto a gentileza de um raio do sol que se esforça em iluminar a
terra fria pela manhã. Sinto a chuva a nos amparar delicadamente em um momento
de introspecção. Sinto a força daquela senhora que trabalha, ainda que com
dificuldade. Sinto o sussurro daquele jovem que se decompõe em incertezas.
Sinto o calor de um dia de sol e o que se emana do povo belo que me circunda.
Sinto o afeto do generoso e a solidão do poeta. Sinto a maré que se quebra sem
jamais se deter… e sei que isso é bondade. Firmino Rocha é o simples que
denuncia em sua singeleza a coisa cotidiana do amor bondoso. E nos provoca, e
nos incita a o admirar. Quero, como ele, toda esta poesia que nasceu com o
mundo! Quero também tocar o tecido macio e íntimo que sustenta os sentimentos
do porvir! Quero, também eu, tudo amar! Que Firmino, de poesia, torne-se tempestade,
e desperte a chuva mais amorosa para inundar os corações de todos. Que lave a
maldade a nos ocultar os sonhos. Que se faça, aos amantes, caminho e destino!
Salvador, 31/10/2019.
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