terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Metafísica da insônia

Dorme aquele que vive sem pesar.
Vige o aturdido,
o malfeito,
o abalado.
Falecem somente os vivos,
porque o sono é a dádiva cotidiana
da morte.
Já os insones assistem
à perpetuidade cruel da vida
à invenção das horas
às trevas contritas em oração.
Fadiga constante!
O repouso é o simulacro do nada
que nos antecedeu a todos.
Urgência transcendental
ou desejo metafísico?
O sossego que descansa
é a modorra que sugere
o sentido profundo do adormecer?
Cansaço e revelia:
O desperto quase búdico
emite um alerta homérico
de uma valentia orgânica
ante as raízes coléricas
de nossa pujança.
Viver contra a vida!
Covarde, assassino de Morfeu.
Triste peripécia,
a sua fatalidade insônica.

domingo, 29 de dezembro de 2019

Retrato de uma mercadora baiana

Posso ouvir o frêmito que se desprende
da sua pele
O rumor que se transmuta pela gentileza total
de seu gesto
graciosa!
suave,
linda,
a coisa do seu jeito
o modo com que o ato se vê agigantado
até a afável sutileza
que o torna muito mais
pelo seu corpo:
mais do que a quimera distinta das paixões
mais do que os poemas dos mil e quinhentos
mais do que a musicalidade das bachianas.
Bem-feito é seu tudo
e o dom de crescer por meus olhos
até a perfeição.
Posso sentir a arquitetura dos seus mistérios
e o anseio
o ocaso de meu coração
diante do impossível deste canto.
Alguma coisa de lamento
alguma coisa de infinitamente simples
vem complicar os vértices desse meu retrato
e confronto a angústia tênue de lhe contemplar
silente
de para sempre lhe contemplar assim.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Pensar contra si

Chega um tempo em que não se quer mais ter tempo:
Tudo é um desarranjo essencial e falta.
A inutilidade do amor não se resulta nem se espera
E os olhos de Drummond que secaram,
junto ao seu coração,
agora estão fechados.
É um tempo de solidão sem luzes
de um desconhecimento lúcido de si.
Uma coisa desavisada que mata os próprios pares
e luta na eternidade do mal-querer.
Um tempo anti-fraterno e rude,
momento em que a criança e o velho em seu peito morrem
e se esganam em pura descomunhão.
Os dias, as miradas, as músicas
os mundos límpidos de suas ilusões de repente se subtraem.
As guerras, as fomes e os edifícios não mais prosseguem
e as liberdades se voltam contra o liberto.
Os delicados, num espetáculo, esquecem da vida
E a vida sozinha nada ordena: há apenas mistificação.
Vige um equinócio imenso aqui por dentro
E tateio qualquer outra coisa para que possa ser.
Penso contra mim e lembro
que a insuficiência é a via perene da iluminação.
Perpétuo não ser, meu monumento.
Templo colossal do que não quero.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

O poema prometido

Tenho vontade para criar um mundo
Um anseio que se trepida sobre a glote e retorna
vivo e morto ainda por não ter nascido.
Quero-o olhar de frente!
Estou ansioso como se esperasse um parto
Algo vai nascer por mim...
Tenho uma pujança que me salta da pele
E acredito mesmo nas volúpias de meu coração.
Estou intranquilo!
Pulsa-me forte o gérmen lírico da realidade
Quero inventar as terras novas,
pois Pasárgada já passou!
Para onde hei de me ir embora?
Tenho um futuro...
E a via é aberta pelo corte limpo da palavra.
Abre-me o mar vermelho de sangue!
Passo sozinho rumo a minha própria Canaã
Venha-me o deserto...
Caminho por todas as décadas
em busca do poema prometido.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

O oráculo baiano


Esboço a uma aproximação intuitiva da baianidade
O feitio baiano, a sua própria compleição é oracular. É um temperamento das coisas, é uma índole da revelação. O baiano não é tipicamente escrutinador, seu gênio não é compatível com nenhuma sorte de ciência. Pelo contrário, seu caráter tem qualquer coisa de erro, de vacilação, de inconstância que o faz inimigo das coisas certas. Essa coisa da baianidade, e que é aquilo que a aproxima das modulações místicas do canto, transforma a fisiografia do humor baiano em um apelo por Geopoesia.
É oracular essa cognição que intimida a tenuidade entre o vigil e o onírico, esse espírito de João Valentão[1], que não precisa dormir para sonhar.
A fisionomia espiritual baiana, com suas dessemelhanças protagonizadas sobretudo pelos espíritos soteropolitano e grapiúna, constitui-se morfologicamente por um estilo de vida mágico-cético. Ora, composta de dois elementos contrários, a estética baiana se desenvolve numa sorte de armadilha antitética em que a experiência mágica se trepida sobre um excelso senso do fugaz. O espírito baiano consegue consolidar o absurdo de um temperamento ao mesmo tempo exuberante e fugidio. Por vezes sublime, por vezes ápice de lucidez, mas sempre imbricado a uma inigualável sensibilidade mágica.
Mestres em viver e usufruir da ilusão, concebem igualmente todos os níveis de seu artifício, como em uma verdadeira cosmogonia das aparências. De certa forma, a baianidade funda e escrutina a mitologia das quimeras em que atua. Tendo herdado a comédia muito trágica dos europeus ibéricos e o humor de magia colossal de indígenas e, mais apropriadamente, de africanos, o feitio baiano apresenta uma tendência burlesca. Perfídia contra as formalidades europeias, impostura na tensão irregular entre si e o indigenismo (entre o medo e a aversão), calor amargurado da triste peripécia africana: tornou-se o temperamento do flerte, do acaso, da secura, mas irremediavelmente de uma profunda e fecunda tristeza que elevou e tem elevado o sentido oracular baiano a suas maiores proezas.
O mágico-ceticismo baiano rumina indefinidamente um canto que desafia o tempo. E todo cantar desvanece sem um profundo sofrer… Por isso a baianidade também se confunde com a arte de amar, na qual a perturbação espiritual de sua antítese subjetiva eleva os ânimos até uma exortação ao sofrimento. Instituto do amor maior, o baiano é discípulo do coração e devoto de suas mortalhas. Inconsequente ou pessimista, entregue ou trágico, manifesta uma abertura para o afeto intemporal: “O tempo que nunca passou./ Sê ele/ Sê o tempo do amor”, disse o poeta-coração. “Marca a palavra com a lágrima do amor” (ROCHA, 1968, p. 69)!
O conflito subjetivo da baianidade permite a edificação de sua estética oracular. Na sua “oracularidade”, as coisas se revelam como num sussurro místico, fonte das mais caras criações. A revelação criativa não é, contudo, nem pode ser, exclusividade de qualquer estilo de vida, senão que é coisa do lirismo geral, ordem atemporal familiar aos grandes do mundo. Entretanto, no caráter baiano há alguma coisa de auscultação, de extrema delicadeza, que o leva a se inclinar intimamente à noite, aos “frêmitos de todos os mistérios” (1968, p. 27), como dizia o amoroso grapiúna Firmino Rocha. Ouve, então, e espera com sua amabilidade a ternura mais distinta, e se torna poeta.
***
O principal exemplo da desconjuntura subjetiva do baiano é o desenvolvimento quase paroxístico do marxismo no imaginário local. Como uma cultura tão particularmente mágica poderia se filiar a uma filosofia anti-religiosa? Ao meu ver, o maior representante deste singular conflito íntimo é o escritor Jorge Amado. A oposição categórica de princípios entre um estilo de vida exuberante e vivificante como é o mágico, cheio de sem-sentidos e obscuridades, e outro claro, soteriológico e científico, como é o marxista, sustenta os pesadelos de muitos latinos aproximados do ideário otimista, mas se desenvolveu muito fecundamente na literatura amadiana.
Vemos com clareza o aludido conflito em variados exemplos de sua obra: Mar Morto, Pastores da Noite, Tenda dos Milagres, ABC de Castro Alves ou Terras do Sem Fim. Em todos esses trabalhos há uma descontinuidade mirabolante em que o mágico de repente cede o seu lugar à guerra de classes, à urgência das desigualdades e à perspectiva de uma mudança desestratificante.
Qual seria a conexão simbólica entre toda a mística da relação Yemanjá-Guma, em Mar Morto, marcada sobretudo pela atração total, pelo irremediável da fatalidade mágica, e a ascensão repentina de Lívia com sua brusca tomada de atitude, representação óbvia de um lampejo otimista? O que dizer do desconcerto nascido da dissonância entre o ambiente exuberante e quase-totêmico da Mata de Ilhéus em Terras do Sem Fim, quando confrontada pela dureza materialista da crítica aos privilégios, à desigualdade, o que certamente é a substância toda da continuação narrativa nomeada São Jorge dos Ilhéus?
Como explicar o fulgor lúcido em meio à sombra total e vívida de um Canto de amor à Bahia, quando do alto de sua exaltação, Jorge Amado retrocede a narrativa, como a interromper repentinamente um sonho: “Nem tudo é doce e poesia apenas, e o drama explode nas ruas em enxames de crianças famintas, na multiplicação dos mendigos, na fome em terra tão rica” (1982, p. 62). É uma terrível e implacável contradição! “Nem tudo é doce e poesia apenas”, disse o poeta, o mesmo poeta que exaltou em murmúrio cantado o tremendo do esboroamento mágico-místico: “É doce morrer no mar...”. Tanta riqueza em uma linha! Um dito que mais parece um afeto, tão transcendente e desconcertante que é para o simbólico das palavras. É belo e sério. É doce e irremediável o hálito salgado deste abraço de sereia. Como jamais esta coisa, que é a poesia em si mesma, poderia se opor ao sério, gélido e triste, sendo ela também o desposar de tudo isso junto ao sublime, ao belo e ao extático? Como conviver com fronteiras tão mal traçadas, tão vergonhosas e dissolutas que não despertam outra coisa senão a fantasia e o interesse pela profundidade de um gigantesco (e autêntico) disparate baiano?
Àqueles para quem minhas palavras suscitam o aproximar intuitivo do âmago poético amadiano, convido ainda a uma outra demonstração: toda a contradição do mágico-ceticismo de Jorge Amado pode ser bem apreciada pela história de seu personagem Pedro Archanjo, em Tenda dos Milagres. Suponho que sentirão no aludido papel o verdadeiro sem-jeito, a má explicação, o apelo ao “falso culto” que só um otimista-progressista-científico poderia oferecer ao tentar conciliar racionalmente a sua autenticidade ora mística, ora brutalmente lúcida. Pedro Archanjo falhou em dizê-la, e, na mesma medida, foi bem-sucedido quando a exibiu com esplendor e a fremiu, como determinava seu destino.
          E também penso que assim seja o destino de todos os grandes baianos, como foi o de Jorge Amado: uma coisa de Pedro Archanjo, um mágico-ceticismo mal resolvido que só pode fazer movimentar no espírito um desconforto que vem às vezes como contemplação e choro, às vezes como ação e verbo. E verbo, choro, contemplação e ação se unem em um turbilhão mítico no mais íntimo da alma e decantam, e rubricam, e insinuam qualquer coisa de lágrima, qualquer coisa de angélico, que é um rumor breve sobre os ares da Bahia. Há sempre um destino para um grande baiano. E ele há de sempre o sofrer, de sempre o desejar enterrar no mais fundo sepulcro do tempo. Contudo, e para o seu azar, o mais fundo é sua alma mesma, perdida, como deve ser, em vacilações místicas que brilham na solidão profunda de todo mistério.
***
A essência da baianidade é o mágico-ceticismo, tendo a antítese como fonte de fecundidade. O que há de plural não são “baianidades”, no sentido de múltiplas nascentes para modos distintos de ser baiano, excluindo, portanto, qualquer vestígio de continuidade e coincidência entre os modos de sua presença, mas estados mais ou menos intensos e manifestações mais ou menos únicas de um mesmo mágico-ceticismo. Desta forma, obtemos estilos singulares de baianidade. Conseguimos, através desta aproximação, notar as enormes dessemelhanças entre o perfil doce e insuspeito do lirismo grapiúna e a maternal, estrondosa e imensa extensão poética do lirismo soteropolitano. Tudo isto igualmente baianidade, tudo autenticamente oracular. Obviamente, ainda considerando estes dois polos líricos da Bahia, temos que não se limitam exatamente a uma ou duas regiões geográficas, mas são como pontos de convergência para os quais se direcionam os temperamentos essencialmente mágico-céticos em busca de caminhos e de destino.
Que se venha de Belmonte, Curralinho, Itajuípe, Canavieiras, Cachoeira, Santo Amaro, Juazeiro, Irará, Jequié, Barreiras, Feira de Santana ou Vitória da Conquista: o núcleo expositor do desembaraço poético baiano se observa em traços significativos da pluralidade de feitios que compõem o mágico-ceticismo soteropolitano, ou ainda bem o grapiúna. Em verdade, a baianidade soteropolitana, em especial, é como um encontro fraternal dos mais diversos estilos baianos, em que o espírito interiorano eclode e desemboca poeticamente em meio ao mar gigante da cidade da Bahia. Salvador, liricamente falando, é um abraço maternal de enorme gravidade. Não é exatamente centro cultural, é muito além. Esta cidade é o templo mágico em que irradiam os cantos mais profundamente líricos da Bahia. É o espaço vivo em que se incorporam e se manifestam os mais altos chamados interiores.
Por outro lado, o “grapiunismo” é talvez a expressão mais autêntica de uma baianidade singular. Entre os grandes estão desde belas metamorfoses morfológicas (no fim, representantes de toda baianidade), como Jorge Amado e Adonias Filho, passando por Sosígenes Costa, Telmo Padilha, Hélio Pólvora, Cyro de Mattos, Jorge Medauar, Valdelice Pinheiro e muitos outros do passado e do presente de quem acabaríamos não fazendo justiça, até o que identifico como a maior revelação do espírito grapiúna: Firmino Rocha. Este grande amoroso, místico, ingênuo até o âmago do poema, sóbrio até os ossos de seu lirismo, provavelmente jamais será considerado como protagonista da literatura baiana. Entretanto, não há verdadeira sensibilidade que não sinta um embaraço vertiginoso após o contato com a obra, ápice da delicadeza, do Poeta Firmino. Firmino Rocha é o verdadeiro poeta-coração, uma ferida aberta cuja ternura revolucionou o grapiunismo, expressão de seu cume. Nenhuma de suas criações ocultou o mágico-ceticismo manifestadamente singular do espírito grapiúna. Há sobriedade, há delicadeza, há crua inclinação para a auscultação lírica, há a mais desenvolvida mística da poesia local, há profundo apelo social, há uma ingenuidade quase onírica que se expressa como saudade e recordação dos seus “luares de maio” e de sua “Rosinha”.
O grapiunismo é um modo de baianidade cuja peculiaridade é a proeminência do trágico, cultivado no mais profundo da alma regional desde os conflitos entre vila de Ilhéus-índios Aimorés-holandeses até o escândalo sangrento da, mais apropriadamente, formação grapiúna por meio do fenômeno do “chão de cacau”. Assim Adonias Filho nomeou a particularidade do sul da bahia em seu Sul da Bahia: chão de cacau (uma civilização regional). O regionalismo grapiúna é notório, e não de agora. O espírito quase megalomaníaco e pretensioso, que fez até o genial Adonias Filho falar da região como um “pequeno país” de tão singular, remete-nos a um passado nem tão longínquo em que o isolamento e o receio compunham gravemente a vigência do povo da vila de Ilhéus. Despovoamento, perigo, inassistência, afastamento e medo consolidaram as raízes de uma modulação afetiva muito própria de um povo e que expõe, ainda que em pequena medida, um discreto messianismo que eleva o temperamento grapiúna a sentimentos cada vez mais extáticos e líricos.
***
Os limites do espírito baiano estão assinalados na sua inabilidade para o progresso. Isso que é imputado folcloricamente no país como preguiça, não é, de fato, a representação de uma falta, como a falta de apreço pelo trabalho, quando, pelo contrário, o povo baiano sofreu e tem sofrido duras jornadas em ofícios para a sobrevivência. Trata-se de uma total incompatibilidade psíquica, fisiográfica. O real da Bahia provém de uma intencionalidade anti-soteriológica e anti-otimista: o gosto do viver está em tirar proveito da antítese entre mágica e ceticismo, sem nenhuma pretensão ou inclinação para qualquer sorte de resolução geral das peripécias em si imbricadas. Não se caminha para nenhum fim, para nenhum desígnio, deliberação, sentença ou decisão. Antes, retira-se da vida um aspecto que interliga estética e algo até mesmo de culinária, como se o feitio terminante do caráter científico não oferecesse gosto algum, como se a resolutividade progressista não insinuasse um estilo de vida mais saboroso, sendo o sacrifício da perda de sua fecundidade experiencial e poética (corte necessário para se conceber o progresso) um valor alto demais. Nada de ralo, sensabor ou insosso pode jamais despertar interesse ao tipo baiano, pois a sinuosidade de seu perfil lhe confere uma morfologia de imprecisão e desamparo cognitivo, própria dos auscultadores e místicos, incapacitando-o para a grandeza em termos cosmopolitas e científicos.
***
Agora, quando enfim chegamos ao final deste simples ensaio, podem se levantar as críticas acerca da proveniência e da superficialidade desta aproximação intuitiva. Se bem as façam, não há mal algum: tanto melhor. Que apontem, portanto, o erro ou a vulgaridade que denunciariam, ao contrário do que vivencio, a artificialidade do que porventura imagino ser um sentimento natural, íntima experiência baiana! Onde estaria essa baianidade, podem perguntar, senão no espírito e no poema de alguns grandes literatos? Onde estaria a baianidade que é do povo, que é das coisas cotidianas, que é do baixo material corporal e das intrigas, insinceridades, conflitos, amores e repúdios dos mais pulsantes corações baianos? Onde está o mágico-ceticismo dos simples?
Não há revelação mais autêntica do que a aparecida no entremeio das modulações de afetos da massa baiana, em que se insurge o mais vigoroso do mágico-ceticismo em uma forma peculiar de vida comum, uma espécie de estética da ironia. O feitio baiano, em seu mais visceral conteúdo, é irônico. De um humor totalmente particular, de uma conduta que jamais separa a tragédia da comédia, de uma irreverência que impede com unicidade o caráter geral do baiano de levar a vida demasiadamente a sério. A baianidade antitética cultua e desmoraliza as coisas as mais sagradas. Não há provavelmente outro temperamento em que o espírito carnavalesco poderia melhor se desenvolver, no sentido de uma inversão mais radical de símbolos, estruturas e figuras do que na fisiografia sensível baiana, morfologicamente dotada de todo um encantamento mágico e ainda de toda uma crueza pirrônica que lhe permite o claro-escuro de um movimento genuinamente irônico. Aí está a grandeza do povo, aí está o lirismo que transfigura tudo de volta ao povo….
A transfiguração se vê também na eclosão de seus poetas. E é desta forma que voltamos a Jorge Amado, mas de uma forma diversa. Em uma carta endereçada ao lírico em agosto de 1936, o escritor Monteiro Lobato introduz a exposição de uma verdadeira lição de sensibilidade poética em referência a sua recente leitura do livro Mar Morto[2]:
Em novembro do ano passado estive por varias vezes naquele caes, perto da igreja da Conceição da Praia, vendo os saveiros atracados e os que vinham vindo de velas abertas - e pensei em você. 'Qualquer dia o Jorge Amado presta atenção e pinta os dramas que devem existir aqui'. Adivinhei (1936, p.1).
Um lírico não descreve os fatos ou relata acontecimentos. Um lírico pinta dramas, no sentido de ser receptáculo e abertura para o florescimento de um problema. E isto é o drama, algo que é terminantemente não resolvido, talvez até mesmo não resolvível. Se não há conflito, se não há profunda antítese e tristeza fecunda, não há riqueza capaz de fazer se afinarem sensibilidade, abertura e poesia, não há chamado. E a pintura do drama é uma composição toda singular, toda comprometimento, a qual transfigura a manifestação sensível de todo fundo de vida de um povo, de seu mais íntimo confronto, em um chamado oculto e misterioso que desafoga, no gênio poético e em sua poesia, toda a densidade de sua sombra afetiva. É então no jogo de claro-escuro do poema que o canto inaudível emanado do mais coberto e imo de um povo volta a si, todo novo (um Canto do dia novo…), todo transfiguração, e se faz mais vida, e encouraça de lirismo a pele ardente dos baianos até que sua história mesma seja ainda mais pura e autêntica poesia. Ainda na carta a Jorge Amado, Monteiro Lobato eleva aos cumes a sua sensibilidade e traz afeto ao peito dos liricamente delicados (pujantes, entretanto, de vida):
Seus livros da Baía revelam-me mais que um escritor, que um romancista, que um artista. Revelam-me uma força da natureza, uma especie de harpa eolea que ressoa à passagem dos ventos dos dramas da miséria. Daí a especialíssima impressão que causam - única, inconfundível e tragica. Tragica no sentido grego da palavra. [...] Difícil definir seus livros, meu caro Jorge. Eles desgarram de todos os moldes assentes - são livros de dar dor de cabeça aos acadêmicos, aos brochas, aos seguidores de regras de arte, aos onanistas da forma. Livros dolorosamente terríveis porque contem verdade demais. E contem verdade demais porque, como harpa eolea que você é, eles são a propria verdade circulante no ar como ondas e captadas por uma antena potentissima (1936, p.1).
          Uma força da natureza, não um escritor! Quanta beleza! Quanta percepção! Sendo meramente escritor, não poderia trazer a verdade viva em obras transfiguradoras, porque as verdades que ressoam nos ventos em dramas da miséria, as que doem nas cabeças dos onanistas da forma, não são discursos ou corpúsculos: são a força mesma emanada das modulações ocultas do temperamento baiano, reveladas apenas a uma aproximação com extrema abertura, uma aproximação intuitiva, capaz de fazer audível o canto oracular do rumor mais belo e íntimo. Auscultação imediata ao âmago da antítese em meio aos frêmitos de todos os mistérios, em meio ao silêncio sagrado da palavra que gesta e nasce como caminho, verdade e destino. Há sempre um destino para um grande baiano. E a baianidade é um caminho que perfura as mais indistintas escuridões, desocultando as flores e as chagas mais belas, as mais sóbrias.
          Para um baiano cujo amor é a fronte e o lirismo o coração, a Bahia estará sempre miticamente sobreposta a sua pele, como subscrita, assinatura ao fim de uma poesia. Os martírios e as mortalhas da compleição mágica e lúcida só enveredam o olhar rumo às margens dos sentidos, onde reinam êxtase e ironia. Um cético sacramentado, um materialista feiticeiro, uma contradição, um disparate, um baiano. Orgulho tênue frente a sua realidade toda onírica. Ardor cálido, mas afável frente a toda crueza impolida. A baianidade grita como a estampar o solstício brasileiro! Mas é ainda mais bela como murmúrio breve, como coisa muito custosa de se revelar. Este é o oráculo baiano, a inclinação que vige em ferida viva à noite. E revela na aurora a palavra transfigurada, o ocaso de todo desamor.

Salvador, 03/09/2019



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMADO, Jorge. Bahia de todos os santos: guia de ruas e mistérios. Rio de Janeiro: Record, 1982.
FILHO, Adonias. Sul da Bahia: chão de cacau. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.
LOBATO, Monteiro. [Carta] 23 ago. 1936 [para] AMADO, Jorge. Salvador. 1f. Sobre a recente leitura do livro Mar Morto.
ROCHA, Firmino. O canto do dia novo. Salvador: Mensageiro da fé, 1968.



[1] Música composta e interpretada por Dorival Caymmi.
[2] Optei por manter a redação original em todas as passagens desta carta.

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

O mal como mestre


A doença me aparta de mim mesmo.
Oculto o tempo orgânico da vida
Mostra-se a face corrupta.
Retalhado o amor expansivo
Diminui-se a visão para fora
mas adentro tudo se agiganta.
Percebo órgãos e impulsos
Desejo as pazes e os sonos.
Onde estava todo esse corpo
quando os dias eram os mesmos?
Misteriosa semente dos pensamentos
A mazela me constrange ao mundo.
Distúrbio que revela
Moléstia que alteia
Achaque que arvora.
Nada parece o mesmo
Nem mesmo aquele céu risonho
Cuja timidez manifesta me devora.
Anil puro e desperto,
nuvens esparsas,
algum sonho que é meu se enfurece
abatido nesses ares firmados
— limites enfermos do globo —
padece, meu Deus, na tosse cinzenta!

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

O Poeta-Coração


Não conheci Firmino Rocha. O destino não o quis. Digo que não o conheci, mas o mais correto seria dizer que jamais pude me deparar com seu rosto sóbrio de verdades esquecidas; nunca lhe toquei os dedos suados num fim de tarde em Itabuna; nunca pude ouvir sua voz que se erguia como rumor nos ares grapiúnas. Ao contrário do que afirmei, sim, conheço Firmino Rocha, porque vivemos o mesmo tempo. Somos contemporâneos, assim acredito, pois vivemos o afeto e o coração por meio da ingenuidade mística da criança. Comungamos a fraternidade que só a delicadeza do poema pode despertar. Irmãos! Assim o quero e assim o aprecio! Como o Juan Gelman enunciado por Galeano, olho para homens e mulheres ao meu redor e não vejo contemporâneos. Mas lá está, nisto que chamamos passado, a beleza intemporal do lirismo de Firmino, graça que me abraça e me faz viver, orienta-me ao poema.
Agora, quando finalmente me pego pensando sobre como desenvolver este pequeno escrito, lembro-me de tudo o que compôs Firmino em minha história até que sua poesia se fizesse forte, insuportavelmente forte em meu coração, para fazê-la ecoar por mim mesmo. Veio-me a lembrança do primeiro canto, do seu primeiro canto a contagiar meus ouvidos: Deram um fuzil ao menino. Os anos em que o mistério de suas cenas, a força imagética de seus versos, os cultos silenciosos ao íntimo, ao hábito microscópico, ressoaram sem cessar em meio ao caos de meu temperamento. Estive sozinho neste seu canto, e assim se passaram os meses e se fizeram anos, tempo suficiente para que meu próprio espírito estivesse disposto a caminhar ao lado da poesia.
Comprei um livro. Vivi a trajetória lenta, paciente, de sentir seus encantos, de rememorar suas lembranças, de lamentar suas tristezas, de me apiedar de seus desencontros, de me extasiar com suas ilusões. Lê-se Firmino Rocha em doses, num ritmo sereno, numa intensidade crua de quem aprende vagarosamente a amar a vida. Ler sua poesia é se desfazer de qualquer regresso, é se dispor a cantar a eterna novidade das lembranças. Só é possível sentir o ímpeto de seus versos na medida em que cada um deles passa a tratar de quem os lê. Só é possível comungar do afeto calmo de Firmino, quando nos permitimos provar das ternuras dos nossos corações de menino. É preciso ver através da poesia. Vejo, portanto, através das lentes que são minhas mãos, e vivo no poema o gérmen lírico da realidade.
Na poesia amorosa e simples deste itabunense, vislumbrei purezas impensáveis. Na sua ode ao amanhã, O canto do dia novo, a primavera que nascerá encontra as flores mais distintas. Nunca havia visto uma ternura tão genuína. Nunca havia sido tomado por sentimento tão sincero e primordial como por meio das palavras misteriosas deste homem que foi e é muito mais do que meramente homem: coisa do amor, sábio, mensageiro, místico, poeta. O destino o quis. Coração grande demais para o presente, este tempo que nada é. Radical oposto: tempo que nunca passou… tempo do amor. Eis o que é, como joia mais rara e bruta, o íntimo de Firmino Rocha. Oposição total ao tempo como progresso, porque uma entrega total ao tempo como afeto. E neste mundo de puro afeto ainda vive o poeta, e nunca morrerá, assim como não morre o poema. E só lá podemos o encontrar, aberto à visita dos sensíveis, dos que se enternecem, dos que compreendem a magnitude da espera pela palavra imersa em total silêncio. Firmino Rocha ainda fala aos que ouvem os murmúrios gentis que se velam na mudez aparente do mundo. Ele toca e aquece o peito de quem muito ama, ainda que em solidão. Não estamos sozinhos, não estamos sozinhos. E talvez a sua poesia - um erro, a poesia não se detém -, talvez a poesia que por ele nasceu, seja ainda capaz de se tornar caminho e destino para quem assim a pressinta profundamente.

***

Não se examina a bela rosa do jardim. Ela definha quando a cortamos o caule para investigar qualquer banalidade exigida por nosso intelecto. A mesquinhez do erudito é invasiva, irresponsável e mortificante quando se debruça sobre a graciosidade das coisas simples. O sábio, por sua vez, já venceu a rudeza do espírito. Alma mais que tudo, conserva a excelência do bem viver. Aquela rosa é Firmino e também este sábio. Em 1968, um colunista chamado Adroaldo Ribeiro Costa escreveu num jornal sul-baiano: “Muito obrigado, Firmino. Não analiso a sua poesia, não. Para que? Quando encontro uma linda flor não cogito de classificá-la: enlevo-me com sua beleza e seu perfume. Só”. Enlevando-nos pelo canto de Firmino compreendemos um pouco sobre a pureza, sobre a harmonia, mas também sobre a enorme e grave tristeza da vida, pois seu poema é “marcado pelo sofrimento e pelos densos efeitos de entre tons de sombra e luz de sua alma atormentada”, como escreveu Bartholomeu Brandão no preâmbulo de Momentos: Prosa e Canto. Há ainda de se ressaltar o valor literário, além do sentimental e extático, da obra do poeta grapiúna, alteada por um dos grandes críticos do século XX, Otto Maria Carpeaux, o qual, ao ler alguns dos poemas de Firmino, sentenciou: “Lorca assinaria estes versos”.
Pela inspiração e pela lisonja que se aviva em fabulações nascidas da pequenez sul-baiana, surge um sentimento lírico, fantástico, em que o messianismo ganha corpo e faz pensar na estranheza e misteriosidade desta terra grapiúna. O que dizer de Ruy Póvoas, alguém que, pensando na fisionomia espiritual itabunense, perguntou-se como haveria de ser se, ao invés de Itabuna, fosse sua terra a Grécia?: “Certamente, fosse aqui a Grécia e Firmino Rocha seria Homero. Pelo menos, uma Ilíada ele construiu: Deram um fuzil ao menino”. Elevemo-nos a este pensamento! Fosse Firmino Rocha o Homero baiano, de qual Ocidente seria o pai? Quais Antiguidades, quais Peloponesos, quais Cristos, Inquisições, Navegações, Iluminismos, Romantismos e Ciências se despertariam a partir da flama e do ensejo completamente amorosos que brilham pelo coração de Firmino? Quais guerras, quais ódios, infâmias, traições, mágoas e desesperos se decantariam ao sentir a aurora singela renascida por seus versos? A extrema ingenuidade do que escrevo me assombra. Jamais poderia ser Firmino o pai de Ocidente algum, pois nenhum Ocidente trágico é suficiente para marejar os olhos dos homens, nem para entoar os cantos do poeta! Nenhum tempo se iguala ao corte místico da intemporalidade sagrada que resguarda a Amada, flor eterna que desabrocha na primavera do porvir. Tempo algum contém a ternura que se interpassa infinitamente pelos solitários, e que nos beija os lábios quando choramos, e que nos toma as mãos quando caímos.

***

Firmino Rocha faz lembrar das extremas minúcias do cotidiano. Remete-nos aos risos da brincadeira de roda, aos afagos consoladores dos amantes, às cores que reivindicam o mundo quando surge, enfim, o crepúsculo. Uma jovem mãe entra no coletivo com seu filho ao colo. Ultrapassa a catraca e o balanço do ônibus desperta a criança: olhar de infinita brandura, a pequena cabeça contra seus seios, mão calorosa sobre a face minúscula. Zelo total, a paz se estabelece em uma afinação silente. Sorriso de absoluto contentamento. Ali está Firmino, todo doçura, a lhes contemplar o carinho e a bendizer a aurora que os conduziu ao amor. Ele abraça ali a todos: aos pares que de repente se dão as mãos, aos amigos que se reencontram e já não suportam a saudade, aos sensíveis que lamentam os sofrimentos do mundo, aos simples que agradecem humildemente, aos desesperados que se exasperam, aos justos que se indignam. Maravilhoso é o templo que se abre para essa poesia das brevidades, coisa que denuncia o sentimento transversal e solidário da afabilidade.
É o Poeta-Coração! O canto do dia novo não é apenas um livro de poemas, é um conjunto de ensinamentos, de mensagens que se encaminham ininterruptamente ao amanhã. Um destes grandes ensinamentos é explícito: Marca a palavra com a lágrima do Amor. “Poeta,/ marca a palavra com a lágrima do Amor/ E segue o teu caminho/ Serenamente./ Serenamente./ Verás como é verdade, pura verdade, a tua mensagem./ Verás como virão ao teu encontro as flores mais belas, as flores mais humildes./ Verás como se deixarão descobrir as fontes mais castas./ Quantas estrelas nascerão na tua noite!/ Quantas canções escutarás do teu silêncio!/ Poeta,/ Marca a palavra com a marca da tua Alegria./ E sorri para teu irmão./ E espera a tua amada./ E canta teu Poema”. Novamente como sábio, Firmino Rocha compreende e transmite a mensagem pela mais pura auscultação. Ele entende e orienta à paciência, à calma, à serenidade lírica, ao silêncio, à mais bela espera. “Não acordar a palavra./ Deixar que ela sinta no silêncio/ os frêmitos de todos os mistérios/ Até o último instante./ Nova e virgem então ela virá/ e ao poema dará seiva e fervor./ Não acordar a palavra./ Deixar que ela durma no silêncio/ o seu fecundo sono./ Até que como o sol desperte/ e descubra as coisas/ e nada deixe em escuridão e frio./ O poema então será verdade,/ amor e caminho”. Na madrugada se manter vigil, resistir à solidão máxima da escuridão, até que enfim a palavra surja em meio à fulguração total da aurora. “Ouvir o canto da madrugada/ O canto suavíssimo do caricioso silêncio/ e das mensagens do sono das coisas escondidas./ O canto prenhe de pureza/ das águas encobertas/ e das emudecidas ramagens/ O canto de Deus./ Ouvir o canto imenso,/ o canto eterno da madrugada./ E tudo amar”.
Firmino é um gesto de amor para a poesia baiana, é um acalanto de extrema ternura que nos faz desejar a bondade. E o que é a bondade? Não, que pergunta fria… o intelecto sempre insiste em reclamar a autoridade. Sinto a bondade pela comunhão com o amigo. Sinto o afago das carícias sutis de meus irmãos. Sinto a gentileza de um raio do sol que se esforça em iluminar a terra fria pela manhã. Sinto a chuva a nos amparar delicadamente em um momento de introspecção. Sinto a força daquela senhora que trabalha, ainda que com dificuldade. Sinto o sussurro daquele jovem que se decompõe em incertezas. Sinto o calor de um dia de sol e o que se emana do povo belo que me circunda. Sinto o afeto do generoso e a solidão do poeta. Sinto a maré que se quebra sem jamais se deter… e sei que isso é bondade. Firmino Rocha é o simples que denuncia em sua singeleza a coisa cotidiana do amor bondoso. E nos provoca, e nos incita a o admirar. Quero, como ele, toda esta poesia que nasceu com o mundo! Quero também tocar o tecido macio e íntimo que sustenta os sentimentos do porvir! Quero, também eu, tudo amar! Que Firmino, de poesia, torne-se tempestade, e desperte a chuva mais amorosa para inundar os corações de todos. Que lave a maldade a nos ocultar os sonhos. Que se faça, aos amantes, caminho e destino!

Salvador, 31/10/2019.

Néctar



Fui uma abelha
sem querer.
Fui um poeta entre nós dois
e isso só trouxe desconsolo.
Digo uma abelha
porque você foi a flor
cujo néctar eu extraí como pude.
Matéria prima total,
seu fluido era todo lírico.
Fiz de nós o espaço e o poema
e isso nos matou aos poucos.
Tive fome.
Minha colmeia não se acabou,
é uma empresa eterna.
Você sorriu em flor e nada temeu.
Isso é belo, ainda que triste.
Nenhuma abelha pode escolher amar jamais:
o néctar é tudo
a obra é a sua vida.

Testamento II


Voltei a ler o Testamento, de Manuel Bandeira
(Já escrevi o meu uma vez,
ou uma centena de vezes?)
E retorno ao sentimento lânguido
das flores simplesmente mortas.
Procuro “meu filho que não nasceu” em meu peito.
Gosto igualmente de crianças,
mas talvez não tanto ao ponto de as gestar em intimidade.
Venho a mim e me oponho ao poeta:
tenho também essa coisa da poesia?
Essa coisa que arrebata ao seio do destino?
Essa coisa que suspende a alma sobre os homens
e se apieda, e se lisonjeia, e se compadece?
Eu não sei, hei de fazer um testamento diferente.
De meus outros cem, perdi as notícias.
Foram ao fim do mundo, aos bueiros,
como tantas outras coisas que já fui.
Morri ontem quando deitei sozinho e estive triste,
e hoje revejo os pontos de uma folha em branco.
Faço dessa folha o meu legado e a rasura de um futuro.
Da rasura nasce uma queixa que se enternece em uma prece.
Desta prece uma aposta que se eleva até o mito.
E o mito, a aposta, a prece, a queixa, a rasura e o futuro não são nada.
Meu testamento sendo um nada cem vezes,
a solidão, um nada que se constrange,
meu devaneio, uma poesia que se percebe só.
Harakiri lírico, mil lutas eu não lutei.
Campo infrutífero, nenhuma terra brotou de mim.
Um pandemônio da Bahia até Pernambuco...
Quero seus olhos fatigados,
Onde estás, Manuel, para me ensinar a usar esse papel amassado?
Do poeta menor ao microscópico!
Ai, Senhor!
Perdoai!

Nota preliminar a um livro seu



Agora você tem em mãos o meu peso
o frêmito que produzi ao virar a primeira página
o sorriso que esbocei ao gostar do primeiro verso
o sem-jeito de meu suor ao me recordar de você.
Agora você carrega consigo o meu traço
a forma estranha com que seguro o lápis
a maneira ímpar de minha mediocridade
a ponta cega com a qual circulei o número das folhas.
Agora você não pode, ainda que consiga de fato
apagar o rastro de minha presença.
Você não pode soprar os restos de pó
de carinho ou contemplação
despejados num suspiro sobre as linhas.
Você não pode sacudir as vestes do passado
muito menos tragar até o termo o fumo do destino.
Você não pode abrir esse maldito livro
belo, ainda que muito novo e muito experimental,
livro de poesias,
e não se mascarar de mim
e não vislumbrar com as coisas da minha retina
o que eu provavelmente mais achei fabuloso
ou o que mais achei fraco e vulgar.
Agora você não pode mais, ainda que haja como
ocultar a vida que emprestei ao papel incólume
secar as veias que nele despertei pelo sangue de meu próprio lirismo.
Agora você detém uma fagulha sempre disposta
um prenúncio de lembrança
uma memória involuntária
que vai voltar
e vai nascer infielmente
como corolário de tudo o que,
no futuro insofismável do que imaginei,
já morreu.

Confusa mecânica dos astros em seus olhos



Ai, as suas maneiras se embaralham
Não há humor que suporte essa rudeza transladada
O seu jogo temperamental e injusto.
Meu peito sendo a terra
O seu, a lua
E essa coisa da nutação que é também sua façanha
E que faz oscilar meu eixo, orientando-me a você
Sendo que tudo o que te faz ser o que é
É a coisa caprichosa e seca da lua sozinha
Contraposta ao rubor gigante disto que sou eu
A terra, infinitamente habitada de ardor.
Tão pequena, lua orbitada
Gira influente a me deslocar
da eternidade cêntrica jamais consolidada.
O jeito obtuso com que me aborda
A forma global com que me satisfaz
A trama fugaz com que se personalizam as luzes
de seu mais profundo olhar perdido.
Nada me torna capaz de deter um feixe sequer
E somente na noite me ilumino por um segundo
disso tudo que é seu e perpetuamente distante
E que sendo distante vive perpetuamente contido.
Alcova, montanha altíssima!
Há uma coisa que me puxa e empurra
E as leis ainda não dominaram a força inapelável
desse instante de amor.
Há uma coisa grave, que não sendo gravidade
ainda move os salões do tempo para além dos rumores
desconhecidos...
O infinito do espaço se apequena e eu vejo
Eu vejo nas reentrâncias de seus olhos
um grito de lua
E talvez os medos cessem e os mares flutuem
E venha por aí um alinhamento qualquer
E talvez...

Solipsismo baiano



"Quero que digam: ele sente profundamente, ele sente agudamente".
Escreveu sobre si, uma vez, Van Gogh.
Ao contrário de Van Gogh, eu sou baiano.
E, sendo baiano,
tenho a mania de sofrer em versos.
Assim,
eu e ele
quisemos coisas muito diferentes.
Meu coração é alguma coisa que sente,
esparramado pelo mundo.
O dele, algum mundo que se sente,
acompanhado pela morte.
Na Bahia não se morrem os corações,
petrificados os corpos
definhados os músculos
e corroída a carne.
Resta além de tudo uma alma errante
dentro dos becos, no alto dos morros,
no mistério das esquinas...
Ensurdecedora terra de passados vivos!
“Quem sentirá tanto como eu a minha agonia?”
Perguntou, Boca a Boca, Nana Caymmi,
e sua voz quis verdadeiramente amar.
Não há outro grito mais grave
do que o que se eleva em sobressalto
de um amor tão trágico às coisas da vida.
Vige o mar revolto e não pisca o baiano:
"não há sonho mais lindo que a sua terra".
Não há coisa tão mágica e pueril,
não há nada tão gigante que não retorne,
mesmo em longínqua lembrança,
a ser sonhada pela terra que pariu Amado
e lapidou o Poeta do povo
para a eternidade.
Para sempre isso, baiano sozinho
Solipsismo baiano,
não entendo os "eus" do mundo,
Só sei o que é amar e ser triste.

© Odisseia do adeus
Maira Gall