Meu Deus
Por que não herdei o jeito grave de vovó?
as rugas sinceras
a fé na vida cravejada
a fé a mais simples
a constante ladainha
serena sobre os infinitos lamentos?
Pai
Por que não herdei o calor exaltado de mamãe?
o furor espontâneo
a face de total transparência
a robusteza autêntica
choro franco que se insurge
e se escapa ligeiro em pura intimidade?
Senhor
Por que não herdei o olhar obstinado
dos olhos mais doces que os meus?
Olhos de um presente total
olhos de um tenro cuidado
olhos que não se prendem escravizados
pelas ninharias das incertezas?
A noite se levanta e permaneço contrito.
Uma oração é um silêncio
de todas as línguas.
Na madrugada, porém,
espero o brilho dos Luares de Maio
e a brandura lunar daqueles olhos
olhos do que quero ver.
sexta-feira, 17 de abril de 2020
O desafio do minuto
um minuto
um minuto metafísico
um minuto máximo
um minuto mórbido
um minuto martírico
um minuto de pura melancolia:
as cinzas das horas dançam
ao redor do desassossego
como colombinas em polvorosa
mil colombinas mocas
um só pierrot malfeito
um pierrot minúsculo
firme amálgama de tristezas
um minuto eterno
pierrot místico
um minuto metafísico
um minuto máximo
um minuto mórbido
um minuto martírico
um minuto de pura melancolia:
as cinzas das horas dançam
ao redor do desassossego
como colombinas em polvorosa
mil colombinas mocas
um só pierrot malfeito
um pierrot minúsculo
firme amálgama de tristezas
um minuto eterno
pierrot místico
sábado, 4 de abril de 2020
Por que estamos isolados?
Por que,
diante de um flagelo mudo que se anuncia, preferimos, a maioria, o
enclausuramento voluntário? O que tememos? Em meio ao cotidiano que se
transforma em uma devassa repetição, também o óbvio se contorce e enrubesce. É
o medo da morte? O receio advoga, então, pela precaução. É a aversão à doença?
A dor e a angústia em total matrimônio. É o horror ao contágio? A linha
invisível de uma comunhão às avessas. Eu não sei. Voltei a Nelson Rodrigues
porque, na ocasião de uma peste, só me sentiria realmente acompanhado — lá vem
o corte intemporal da solidão — por ele ou Antonin Artaud. Talvez também por
Manuel Bandeira. Eu explico: Os dois primeiros escreveram ensaios
impressionantes sobre momentos de praga. Nelson esgotou liricamente a gripe
espanhola, mal que assediara profundamente uma geração inteira, tanto no seu
Rio de Janeiro quanto na nossa Salvador. Artaud não viveu um surto pandêmico,
ao menos não uma ameaça cuja afecção se observaria nos microscópios. Sofreu a
desgraça psiquiátrica em plena belicosa campanha do velho continente, expurgo
que só foi freado em 1945, tendo lhe sugado quase tudo, e verdadeiramente o
“suicidado”, extermínio que se prolongou até 48, quando, num imenso mistério,
morreu. O francês redigiu um Teatro e a
peste, cujo semblante onírico faz pensar na seriedade que a vida preserva
ao se abandonar, ao se jogar e chocar contra si mesma em uma onda
desagregadora. As coisas mudam tanto... Sobre os escombros do passado, o
presente revela a tragédia, a tarefa cruel de viver apesar de tudo. Crueldade,
tragédia — palavras que tocam o coração do pessimista, e o excitam. Mas Artaud
não amava o infortúnio. A severidade da vida que confronta a si mesma oferece,
e assim ele pretendeu ver pelo seu teatro, o ensejo para um amor integral.
Vamos um pouco mais devagar.
Bandeira
publicou um livro no ano posterior àquela mesma mazela espanhola. Em 1919
surgiu o seu Carnaval, relato poético
e triste, o qual pouco coincide com o furor extático daquela festa fevereira.
Pouco coincide? A tristeza e o furor se embaraçam. O livro do poeta
pernambucano exalta a complexidade de um momento que não caberia em nenhum
retrato. Foi com uma impressão parecida que voltei a pensar em Nelson. Ele me
mostrou a face pálida da conflagração. Eu não estou satisfeito, não sinto que
fugimos da morte. Em Ilhéus, de onde vim, acabamos de perder uma amiga da
família para o câncer. Todas se abateram: mamãe, minha avó, minhas tias. Mas
ninguém estava surpresa. A ida da comadre respeitou a intimidade do último
adeus. A morte tem requintes, tem nuances que fazem despertar o encantamento e
o espanto diante do muro inabalável da finitude. Por meio dela, estruturamos
quase toda variedade de nossos problemas. Um fundo inefável que é, ao mesmo
tempo, fonte constante do valor da vida. O russo Lev Chestov alteou a epifania:
escreveu um As revelações da morte,
dando corpo ao ponto de onde se retiram tantas volúpias e tantos desesperos.
Estou
persuadido de que tememos, antes de mais nada, a vulgaridade da morte sem
sentido. A peste traz a tona a ameaça de um fim massivo, de um encerramento que
rompe o tecido imo a encobrir a liturgia do morrer. Saramago total! É o terror
pela “intermitência da morte”, o que a transforma num mero episódio, num fato
estatístico, numa sequência de números que comporão as literaturas médicas do
futuro. Abruptamente, somos confrontados pelo despudor do acaso, pela
impossibilidade de chorar os queridos, a incapacidade de velar no pranto a
beleza metafísica de nossa limitação. A epidemia abala os valores, corrói a
tensão medular que condensa a atmosfera dos princípios de uma sociedade. Temos
medo de não sermos ninguém. Nelson Rodrigues trouxe a notícia de uma
circunstância aterradora, não simplesmente porque nela assistimos ao reino dos
ocasos, mas pela total desfiguração humana. O ser humano corrompido até a
inanidade é o vazio que mais nos apavora, muito mais do que o fim irremediável
para o qual caminhamos. Tememos o frio tédio de apenas morrer. Logo após a
gripe, um de seus vizinhos se questionou o seguinte: “Quem não morreu da
espanhola?”. E, de repente, o presente é como um passado que não vivemos.
Amigos,
contudo, não estamos numa tal situação. A vida mostra e dá vazão a coisas
infinitas, ela não se repete. Estamos no início de uma quarentena sem
perspectivas e o coração está apreensivo. A ocasião expõe por caricatura a
imprevisibilidade do porvir. O sistema (político, estético ou moral) parece uma
coisa esquelética e morta, distante das necessidades as mais orgânicas, as mais
sensíveis. O futuro se apresenta como abertura, e, no lugar de uma fatalidade
apocalíptica (ideário do adoecimento), somos tomados pela efusão das paixões e
pelas ideias apaixonadas. Algo novo ainda não se nomeia em nós… ele se gesta e
muito silenciosamente se insurge. Um carnaval, em polvorosa, está como que para se arquitetar. Em 1919, escreveu
Nelson Rodrigues, tudo estava diferente. Meses após a peste, eram as mesmas
roupas, adereços, nomes e identidades. Mas os usos, os costumes, os pudores, de
repente se lhes pareciam obsoletos. Um truque ou uma alforria? Passada a
mazela, tudo se estava por fazer. O carnaval — o poder do burlesco! — era e é o
campo em que experimentamos ser de outro jeito, em que condutas e ações
incorporam novos sentidos, uma algazarra afetiva e simbólica que produz, que aviva
a mais carnal pujança para animar os caminhos tortuosos de nossa aventura.
Não se pode
antecipar o dia de amanhã, por isso velamos um segredo ainda a ser balbuciado.
As proporções do que vivemos serão dadas e medidas por uma régua que agora não
temos. Mas quão intenso é poder vislumbrar o nascedouro de um mundo novo? As
vias líricas da realidade estão expostas. Há sangue, tristeza, gravidade,
beleza e vigor. O que sacrificaremos? O que se nos deixará com a força
inapelável do esquecimento? Quais serão as novas
roupas coloridas? Um mundo porvir… Não me canso de repetir a pergunta da
música: Como serão os futuros carnavais?
1919 persevera vivo no horizonte do que ainda não aconteceu. Não parecem
manifestas as veias da comunhão? Os rios que irrigam a trajetória irredutível
do amor?
Salvador, 04/04/2020.
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