quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Carnaval

Um eixo imaterial se fixa
por detrás da multidão.
A vida sendo uma grande contração
que se desfaz em fevereiro
num relaxamento lascivo
pujante
erótico.
Dilatam-se os cantos
as avenidas
os choros
e as paixões.
De repente, tudo se engrandece.
A sombra de dionísio se alastra pelas ruas,
pulmão de meu mundo!
E os tambores avivam os corações
que se perderam — franzinos de desilusões!
pelos meses cinzentos.
Desoculta-se a alegria latente
e o peito não é mais um calvário!
Os irmãos se abraçam
os solitários dançam
pois há música
e a música canta o rumor da eternidade.
As peles se tocam e se sentem enfim,
os reis são plebeus e os plebeus mais que reis,
tudo se torna simples
como o beijo num instante de ardor!
Felicidade, infinito mistério!
A melancolia perdura em ti
agora e no átimo do calor:
"quem me dera fosse a vida sempre assim!".

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

O solipsismo amoroso


La vejez (tal es el nombre que los otros le dan)/ puede ser el tiempo de nuestra dicha./ El animal ha muerto o casi ha muerto./ Quedan el hombre y su alma./ Vivo entre formas luminosas y vagas/ que no son aún la tiniebla./ Buenos Aires,/ que antes se desgarraba en arrabales/ hacia la llanura incesante,/ ha vuelto a ser la Recoleta, el Retiro,/ las borrosas calles del Once/ y las precarias casas viejas/ que aún llamamos el Sur./ Siempre en mi vida fueron demasiadas las cosas;/ Demócrito de Abdera se arrancó los ojos para pensar;/ el tiempo ha sido mi Demócrito./ Esta penumbra es lenta y no duele;/ fluye por un manso declive/ y se parece a la eternidad./ Mis amigos no tienen cara,/ las mujeres son lo que fueron hace ya tantos años,/ las esquinas pueden ser otras,/ no hay letras en las páginas de los libros./ Todo esto debería atemorizarme,/ pero es una dulzura, un regreso./ De las generaciones de los textos que hay en la tierra/ sólo habré leído unos pocos,/ los que sigo leyendo en la memoria,/ leyendo y transformando./ Del Sur, del Este, del Oeste, del Norte,/ convergen los caminos que me han traído/ a mi secreto centro./ Esos caminos fueron ecos y pasos,/ mujeres, hombres, agonías, resurrecciones,/ días y noches,/ entresueños y sueños,/ cada ínfimo instante del ayer/ y de los ayeres del mundo,/ la firme espada del danés y la luna del persa,/ los actos de los muertos,/ el compartido amor, las palabras,/ Emerson y la nieve y tantas cosas./ Ahora puedo olvidarlas. Llego a mi centro,/ a mi álgebra y mi clave,/ a mi espejo./ Pronto sabré quién soy (BORGES, 1969, p. 28).

A sabedoria de Borges recupera ensinamentos de antecedências anônimas. Tarefas distantes, conselhos obscuros, mas que se insinuam por meio de um profundo chamado lírico que se atualiza nas sombras do homem vivo.  O tempo, o seu Demócrito de Abdera particular, tirou-lhe os olhos, mas não a visão. A privação não lhe foi mais do que um caminho para o centro de si. O rastro délfico que persiste na voz do poeta argentino é um sinal de lucidez e também de delicadeza. Assim pensou o filósofo romeno Emil Cioran, quando descreveu Borges como “um dos espíritos menos pesados que já existiram, ‘o último dos delicados’” (2012a, p. 102). Na ocasião, Cioran retratava o homem cujo espírito se sobressaía na tenuidade do desconhecimento e da impopularidade, temperamento avesso aos escrutínios da vulgaridade crítica. Borges, uma utopia, o símbolo encarnado de uma vida sem dogmas ou sistemas, sem nações ou baluartes, sem Napoleões e seus hinos. Reflexo de uma obra afeiçoada aos segredos da penumbra, da noite, das nuanças que escapam aos olhares perversos dos intelectuais e literatos. No escuro de não ser visto, o lírico permitiu a vinda de muitas auroras. O recôndito, o secreto que se manifesta pela palavra, sublinha o mistério da própria cegueira: ela revela as vias para a um regresso a si mesmo.
O escrito do poeta reanima γνῶθι σεαυτόν (“conhece-te a ti mesmo”), em que se nos impõem um relato, um conselho e uma tarefa. Saber quem se é se eleva ao maior trabalho de uma vida. O relato mostra o caminho da transformação e a radicalidade do retorno. O conselho indica a direção para onde se salta sobre os obstáculos caídos. A tarefa expõe a grandeza e a natureza daquilo que se espera realizar. Mas como vislumbrar a si diante de um mundo que se apaga? Como reencontrar seu próprio eixo, quando tudo o que fora a realidade se vem a obscurecer?
O tema que gostaria de propor brevemente me aparece a partir de um duplo ensejo: de um lado, o lastro poético de Borges, o qual adverte sobre o caráter encoberto da identidade e do conhecimento de si. Do outro, a reflexão ética de Ernst Tugendhat, exposta em sua fala nomeada “Identidade Pessoal, Nacional e Universal” (1996), em que o filósofo advoga pela possibilidade de um diálogo universal (entre os povos) em busca de direções comuns, ainda que preservando particularidades locais. O problema da identidade, como o coloca Tugendhat, estrutura-se pela constante urgência de permanecer em avaliação e atividade. A identidade é como que um eterno exercício reflexivo por meio do qual se definem, momentaneamente, os horizontes, o perfil e esboço do humano. Expõe-se como uma sequência de questões: “o que sou?”, “o que quero ser?”, “como quero ser?”. Notadamente, a atividade inteligível de decisão reclama a autoridade do intelecto e a possibilidade de diálogos entre pares. É um exercício que depende do comprometimento e de reciprocidade, revelando o sentido político da sua condução. Contudo, ao lado do aspecto político, há ainda um outro mais basilar, mais alicerçador e medular, evidenciado apenas ao fim daquele texto do pensador tcheco: o cunho afetivo que o subjaz. Há uma espécie de ‘não razão’ que cuida de justificar a simpatia que permite o diálogo ético-político, e essa ‘não razão’ é a importância afetiva que serve de teia para as relações e garante a assemelhação mesmo entre a diversidade étnica e cultural das sociedades.
Trago como exercício uma ideia muito simples, ainda que incipiente e obscura: algo como um “solipsismo amoroso”. “Solipsismo”, porque trata do trabalho de uma vida, o qual atravessa a questão da identidade e se engrandece no patamar quase lírico da busca de si, uma espécie de individuação e de uma apologia da radicalidade da pessoa (mesmo contra o mundo que o estabelece e anima). “Amoroso”, porque envolve igualmente um profundo e enérgico desprendimento de si, uma aproximação das coisas que não se nos compõem, uma sensibilidade, valorização e compaixão para com aquilo que não somos e sem o que não podemos nos aproximar de nós mesmos.
A chave deste pensamento está justamente na sua formação antitética. A radicalidade do individual e o desprendimento de si se interpenetram em um movimento transfigurador. O pensamento ético se estabelece na tensão desta antinomia, e se modifica junto à dinâmica subjetiva que se arranja continuamente por meio da sua própria transfiguração. A ética é alguma coisa que pode coroar a busca de si, assomada pelas abnegações que compõem o caminho do homem que permanece em transformação. Por isso, γνῶθι σεαυτόν não significa uma via pelo egoísmo, mas ao contrário. A individuação, a qual está aberta ao porvir, realiza, no amor, o desprendimento do que é para que possa vir a ser. E ao se desprender, vislumbra nos outros homens a sua mesma busca. O sair de si para se reconhecer nos pares é igualmente uma coisa do amor, e como tal, um passo para o conhecimento do que se é.
O trabalho de uma vida, γνῶθι σεαυτόν, articula-se no confronto entre ‘ser o que se é já’ e , assim como recomendou o poeta Píndaro, ‘tornar-se o que se é’. Uma disputa entre a persistência e a mudança, uma força negativa e outra afirmativa, um jogo de claro-escuro que obriga a uma diligência e a uma disciplina sobre a tarefa incessante de conhecer a si mesmo.
Emil Cioran identificou como uma das características da modernidade o fato de que a vida das pessoas passou a ser balizada por realizações exteriores. A proeza contrária, a realização como uma edificação de si, perdera, assim assumiu o filósofo romeno, quase todo o seu sentido. Para Cioran (2012b): “em vez de tender na direção de uma presença brilhante no mundo, de uma existência solar e cintilante, em vez de viver para ele mesmo — não no sentido de egoísmo, mas de crescimento interior — o homem tornou-se um servo pecador e impotente da realidade exterior” (2012, p. 124). Exige-se, na direção oposta, uma sorte de coragem ou pujança para enfrentar as complicações de um trabalho cuja consumação não se materializa, nem pode ser medida. Um ofício cuja dificuldade ainda não se pôde diminuir ou abater, porque é o problema mesmo do ser humano vivo. Um exercício que faz ponderar sobre as coisas todas do mundo, e que se sobrepõe às particularidades do exterior. Na cegueira de Borges, em que todos aqueles elementos que confluem na infinita distância de seu passado (e de todos os passados), chegamos ao centro de nós mesmos. Um centro que aponta ao destino do que somos e devemos nos tornar. Um eixo que insinua a própria unicidade da busca humana por si.
Juan Gelman, retratado por Galeano em seu Livro dos Abraços (2002), pergunta-se sobre quem são seus contemporâneos. Não são aqueles que vê por várias cidades do mundo, pois “têm cheiro de medo” (2002, p. 123). Mas encontrou, subitamente, a coragem num poeta antigo e em dois de seus personagens cantados em verso, mesmo que todos eles pertençam a um tempo imensamente longínquo. A decisão de Gelman e a sua bravura para, sensivelmente, identificar seus contemporâneos (para além do marcador cronológico), é um ato de sabedoria e uma abertura para os desdobramentos éticos do conhecimento de si. A breve apologia da coragem na vida tecida por Galeano, utilizando-se da figura do poeta e jornalista argentino, descreve o que se espera como valor humano e como postura diante das intempéries do contemporâneo. Assim se aponta como queremos a nós mesmos, como precisamos da vida e do valor de outros pares que nos auxiliem na resolução do maior e mais grave de nossos paradigmas: tornar-nos o que somos.
Como uma conclusão para este breve ensaio, gostaria de recuperar o tema do encerramento de Tugendhat (1996) em seu supracitado escrito. Na ocasião, o filósofo terminou o texto com a citação de um conto causídico em que um rabino, como um ensinamento a seus alunos, revelava a importância de olhar a qualquer rosto humano e de reconhecer nele um irmão ou irmã (Cf. 1996, p.18). O valor desta passagem não está meramente no seu sentido mais objetivo, o de um reconhecimento e valorização da coisa humana entre qualquer indivíduo que se nos confronte. A sua magnitude está também na antinomia do feito: a revelação do outro como fundamento para a de si mesmo. A humanidade achada nas dessemelhanças dos pares sugere um centro oculto que é a identidade não materializável do que somos. E então, tendo os olhos já obscurecidos, encaminhamo-nos para o encontro sem horizonte com o nosso “tornar-se”, com o nosso destino. Através do caráter simpático da busca de si, uma revelação se insurge por entre os prazeres da penumbra: breve conheceremos a nós mesmos.
Ilhéus, 15/01/2020

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BORGES, Jorge Luís. Elogío de la Sombra. Ediciones Neperus: Buenos Aires, 1969.
CIORAN, Emil. Exercícios de admiração. Rocco: Rio de Janeiro, 2012a.
____________.  Nos cumes do desespero. Hedra: São Paulo, 2012b.
GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. L&PM: Porto Alegre, 2002.
TUGENHADT, Ernst. Identidad Personal, Nacional y Universal. Ideas e Valores: Bogotá. No. 100, Abril, 1996.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Terapêutica

Aquilo que virá
terá como destino
justificar a tudo.
O que perseverará na noite,
— aí estão as garras do esquecimento 
vindo do dia amargo
em que nada se preserva?
A minha sina é viver assim
como um escravo da fortuna
insondável!
Um fadário com requintes
de mimese.
Palco para onde tudo retorna!
Personagens de mim
com semblante trágico.
Todos incapazes de sobrepujar
o próprio enredo.
Prostro-me à margem do rio
e meu coração está tão triste!
Aprendi com o poema
a arte de trazer dos mortos
o que a morte nunca matou:
o meu Lázaro da alma!
Ele lamenta o regresso...
"Perdi a Amada
que me afagava
no derradeiro sono".
Lázaro chora
e em suas lágrimas
consigo viver.

Ma chère

Há somente uma silhueta.
Não a posso ver por entre a neblina
sem fronteiras.
Apenas o nublado de um céu oculto,
velado ainda mais
por este meu crepúsculo clandestino.
Um futuro,
a linha de um horizonte encoberto,
dissimulado pela angústia de não ser visto.
Uma luz parca que se sobressai,
por entre os véus escurecidos,
ameaça a integridade do secreto
tão logo se me atinge
...penosamente.
O contorno se transmuta,
de incógnita até quimera
e de quimera até alguma coisa
alguma coisa assustadora e bela.
Queixo-me, estremecido:
"C’est trop rapide, ma chère"
e sinto muito medo.
Há qualquer coisa em seus olhos,
porém,
que me acalma.
(Ouço a melodia que se insinua por eles)
"Tout va bien
Tout est beau et calme".

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Meu nome

O sentido que se esconde
por detrás do que me chamam
está no que sou
por entre as teias imemoriais do mundo.
Minha mãe se chama Alice
pela sombra esvoaçante de sua avó.
Acho isso muito belo.
Eu nasci pelo nome de meu pai:
palavra que guarda laços antigos
e invisíveis
que se movem cegamente ao horizonte
do porvir.
As ondas carregam no tempo
raízes remotas,
desejos recônditos!
Atravessam o coração dos corações
de todos aqueles que sustentam meus pés
e apoiam as minhas costas,
o meu tronco da alma!
Mil outros vivem na voz
que me invoca.
E os nomes confrontam a solidão
da eternidade.
© Odisseia do adeus
Maira Gall