domingo, 19 de abril de 2020

Olhos mais doces que os meus

Meu Deus
Por que não herdei o jeito grave de vovó?
as rugas sinceras
a fé na vida cravejada
a fé a mais simples
a constante ladainha
serena sobre os infinitos lamentos?
Pai
Por que não herdei o calor exaltado de mamãe?
o furor espontâneo
a face de total transparência
a robusteza autêntica
choro franco que se insurge
e se escapa ligeiro em pura intimidade?
Senhor
Por que não herdei o olhar obstinado
dos olhos mais doces que os meus?
Olhos de um presente total
olhos de um tenro cuidado
olhos que não se prendem escravizados
pelas ninharias das incertezas?
A noite se levanta e permaneço contrito.
Uma oração é um silêncio
de todas as línguas.
Na madrugada, porém,
espero o brilho dos Luares de Maio
e a brandura lunar daqueles olhos
olhos do que quero ver.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

O desafio do minuto

um minuto
um minuto metafísico
um minuto máximo
um minuto mórbido
um minuto martírico
um minuto de pura melancolia:
as cinzas das horas dançam
ao redor do desassossego
como colombinas em polvorosa
mil colombinas mocas
um só pierrot malfeito
um pierrot minúsculo
firme amálgama de tristezas
um minuto eterno
pierrot místico

sábado, 4 de abril de 2020

Por que estamos isolados?


Por que, diante de um flagelo mudo que se anuncia, preferimos, a maioria, o enclausuramento voluntário? O que tememos? Em meio ao cotidiano que se transforma em uma devassa repetição, também o óbvio se contorce e enrubesce. É o medo da morte? O receio advoga, então, pela precaução. É a aversão à doença? A dor e a angústia em total matrimônio. É o horror ao contágio? A linha invisível de uma comunhão às avessas. Eu não sei. Voltei a Nelson Rodrigues porque, na ocasião de uma peste, só me sentiria realmente acompanhado — lá vem o corte intemporal da solidão — por ele ou Antonin Artaud. Talvez também por Manuel Bandeira. Eu explico: Os dois primeiros escreveram ensaios impressionantes sobre momentos de praga. Nelson esgotou liricamente a gripe espanhola, mal que assediara profundamente uma geração inteira, tanto no seu Rio de Janeiro quanto na nossa Salvador. Artaud não viveu um surto pandêmico, ao menos não uma ameaça cuja afecção se observaria nos microscópios. Sofreu a desgraça psiquiátrica em plena belicosa campanha do velho continente, expurgo que só foi freado em 1945, tendo lhe sugado quase tudo, e verdadeiramente o “suicidado”, extermínio que se prolongou até 48, quando, num imenso mistério, morreu. O francês redigiu um Teatro e a peste, cujo semblante onírico faz pensar na seriedade que a vida preserva ao se abandonar, ao se jogar e chocar contra si mesma em uma onda desagregadora. As coisas mudam tanto... Sobre os escombros do passado, o presente revela a tragédia, a tarefa cruel de viver apesar de tudo. Crueldade, tragédia — palavras que tocam o coração do pessimista, e o excitam. Mas Artaud não amava o infortúnio. A severidade da vida que confronta a si mesma oferece, e assim ele pretendeu ver pelo seu teatro, o ensejo para um amor integral. Vamos um pouco mais devagar.
Bandeira publicou um livro no ano posterior àquela mesma mazela espanhola. Em 1919 surgiu o seu Carnaval, relato poético e triste, o qual pouco coincide com o furor extático daquela festa fevereira. Pouco coincide? A tristeza e o furor se embaraçam. O livro do poeta pernambucano exalta a complexidade de um momento que não caberia em nenhum retrato. Foi com uma impressão parecida que voltei a pensar em Nelson. Ele me mostrou a face pálida da conflagração. Eu não estou satisfeito, não sinto que fugimos da morte. Em Ilhéus, de onde vim, acabamos de perder uma amiga da família para o câncer. Todas se abateram: mamãe, minha avó, minhas tias. Mas ninguém estava surpresa. A ida da comadre respeitou a intimidade do último adeus. A morte tem requintes, tem nuances que fazem despertar o encantamento e o espanto diante do muro inabalável da finitude. Por meio dela, estruturamos quase toda variedade de nossos problemas. Um fundo inefável que é, ao mesmo tempo, fonte constante do valor da vida. O russo Lev Chestov alteou a epifania: escreveu um As revelações da morte, dando corpo ao ponto de onde se retiram tantas volúpias e tantos desesperos.
Estou persuadido de que tememos, antes de mais nada, a vulgaridade da morte sem sentido. A peste traz a tona a ameaça de um fim massivo, de um encerramento que rompe o tecido imo a encobrir a liturgia do morrer. Saramago total! É o terror pela “intermitência da morte”, o que a transforma num mero episódio, num fato estatístico, numa sequência de números que comporão as literaturas médicas do futuro. Abruptamente, somos confrontados pelo despudor do acaso, pela impossibilidade de chorar os queridos, a incapacidade de velar no pranto a beleza metafísica de nossa limitação. A epidemia abala os valores, corrói a tensão medular que condensa a atmosfera dos princípios de uma sociedade. Temos medo de não sermos ninguém. Nelson Rodrigues trouxe a notícia de uma circunstância aterradora, não simplesmente porque nela assistimos ao reino dos ocasos, mas pela total desfiguração humana. O ser humano corrompido até a inanidade é o vazio que mais nos apavora, muito mais do que o fim irremediável para o qual caminhamos. Tememos o frio tédio de apenas morrer. Logo após a gripe, um de seus vizinhos se questionou o seguinte: “Quem não morreu da espanhola?”. E, de repente, o presente é como um passado que não vivemos.
Amigos, contudo, não estamos numa tal situação. A vida mostra e dá vazão a coisas infinitas, ela não se repete. Estamos no início de uma quarentena sem perspectivas e o coração está apreensivo. A ocasião expõe por caricatura a imprevisibilidade do porvir. O sistema (político, estético ou moral) parece uma coisa esquelética e morta, distante das necessidades as mais orgânicas, as mais sensíveis. O futuro se apresenta como abertura, e, no lugar de uma fatalidade apocalíptica (ideário do adoecimento), somos tomados pela efusão das paixões e pelas ideias apaixonadas. Algo novo ainda não se nomeia em nós… ele se gesta e muito silenciosamente se insurge. Um carnaval, em polvorosa, está como que para se arquitetar. Em 1919, escreveu Nelson Rodrigues, tudo estava diferente. Meses após a peste, eram as mesmas roupas, adereços, nomes e identidades. Mas os usos, os costumes, os pudores, de repente se lhes pareciam obsoletos. Um truque ou uma alforria? Passada a mazela, tudo se estava por fazer. O carnaval — o poder do burlesco! — era e é o campo em que experimentamos ser de outro jeito, em que condutas e ações incorporam novos sentidos, uma algazarra afetiva e simbólica que produz, que aviva a mais carnal pujança para animar os caminhos tortuosos de nossa aventura.
Não se pode antecipar o dia de amanhã, por isso velamos um segredo ainda a ser balbuciado. As proporções do que vivemos serão dadas e medidas por uma régua que agora não temos. Mas quão intenso é poder vislumbrar o nascedouro de um mundo novo? As vias líricas da realidade estão expostas. Há sangue, tristeza, gravidade, beleza e vigor. O que sacrificaremos? O que se nos deixará com a força inapelável do esquecimento? Quais serão as novas roupas coloridas? Um mundo porvir… Não me canso de repetir a pergunta da música: Como serão os futuros carnavais? 1919 persevera vivo no horizonte do que ainda não aconteceu. Não parecem manifestas as veias da comunhão? Os rios que irrigam a trajetória irredutível do amor?

Salvador, 04/04/2020.

sexta-feira, 13 de março de 2020

Impasse lírico

Não há coalizão íntima
na vida que anima o poema.
Entre a raiva e o amor
o lastro délfico persiste
e a beleza não se ofusca.
Um andar triste,
uma incerteza,
uma paisagem marejada.
Fabulo minha salvação
em busca de alguma bondade.

"Não acordar a palavra",
ensina o mestre Firmino Rocha.
Mas, e agora?
Que faço do solilóquio imenso
cujo estampido se sente
em minhas orações?
E agora?
Que faço da ladainha perene,
choro do coração,
a minha eterna prece?
E agora?

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Carnaval

Um eixo imaterial se fixa
por detrás da multidão.
A vida sendo uma grande contração
que se desfaz em fevereiro
num relaxamento lascivo
pujante
erótico.
Dilatam-se os cantos
as avenidas
os choros
e as paixões.
De repente, tudo se engrandece.
A sombra de dionísio se alastra pelas ruas,
pulmão de meu mundo!
E os tambores avivam os corações
que se perderam — franzinos de desilusões!
pelos meses cinzentos.
Desoculta-se a alegria latente
e o peito não é mais um calvário!
Os irmãos se abraçam
os solitários dançam
pois há música
e a música canta o rumor da eternidade.
As peles se tocam e se sentem enfim,
os reis são plebeus e os plebeus mais que reis,
tudo se torna simples
como o beijo num instante de ardor!
Felicidade, infinito mistério!
A melancolia perdura em ti
agora e no átimo do calor:
"quem me dera fosse a vida sempre assim!".

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

O solipsismo amoroso


La vejez (tal es el nombre que los otros le dan)/ puede ser el tiempo de nuestra dicha./ El animal ha muerto o casi ha muerto./ Quedan el hombre y su alma./ Vivo entre formas luminosas y vagas/ que no son aún la tiniebla./ Buenos Aires,/ que antes se desgarraba en arrabales/ hacia la llanura incesante,/ ha vuelto a ser la Recoleta, el Retiro,/ las borrosas calles del Once/ y las precarias casas viejas/ que aún llamamos el Sur./ Siempre en mi vida fueron demasiadas las cosas;/ Demócrito de Abdera se arrancó los ojos para pensar;/ el tiempo ha sido mi Demócrito./ Esta penumbra es lenta y no duele;/ fluye por un manso declive/ y se parece a la eternidad./ Mis amigos no tienen cara,/ las mujeres son lo que fueron hace ya tantos años,/ las esquinas pueden ser otras,/ no hay letras en las páginas de los libros./ Todo esto debería atemorizarme,/ pero es una dulzura, un regreso./ De las generaciones de los textos que hay en la tierra/ sólo habré leído unos pocos,/ los que sigo leyendo en la memoria,/ leyendo y transformando./ Del Sur, del Este, del Oeste, del Norte,/ convergen los caminos que me han traído/ a mi secreto centro./ Esos caminos fueron ecos y pasos,/ mujeres, hombres, agonías, resurrecciones,/ días y noches,/ entresueños y sueños,/ cada ínfimo instante del ayer/ y de los ayeres del mundo,/ la firme espada del danés y la luna del persa,/ los actos de los muertos,/ el compartido amor, las palabras,/ Emerson y la nieve y tantas cosas./ Ahora puedo olvidarlas. Llego a mi centro,/ a mi álgebra y mi clave,/ a mi espejo./ Pronto sabré quién soy (BORGES, 1969, p. 28).

A sabedoria de Borges recupera ensinamentos de antecedências anônimas. Tarefas distantes, conselhos obscuros, mas que se insinuam por meio de um profundo chamado lírico que se atualiza nas sombras do homem vivo.  O tempo, o seu Demócrito de Abdera particular, tirou-lhe os olhos, mas não a visão. A privação não lhe foi mais do que um caminho para o centro de si. O rastro délfico que persiste na voz do poeta argentino é um sinal de lucidez e também de delicadeza. Assim pensou o filósofo romeno Emil Cioran, quando descreveu Borges como “um dos espíritos menos pesados que já existiram, ‘o último dos delicados’” (2012a, p. 102). Na ocasião, Cioran retratava o homem cujo espírito se sobressaía na tenuidade do desconhecimento e da impopularidade, temperamento avesso aos escrutínios da vulgaridade crítica. Borges, uma utopia, o símbolo encarnado de uma vida sem dogmas ou sistemas, sem nações ou baluartes, sem Napoleões e seus hinos. Reflexo de uma obra afeiçoada aos segredos da penumbra, da noite, das nuanças que escapam aos olhares perversos dos intelectuais e literatos. No escuro de não ser visto, o lírico permitiu a vinda de muitas auroras. O recôndito, o secreto que se manifesta pela palavra, sublinha o mistério da própria cegueira: ela revela as vias para a um regresso a si mesmo.
O escrito do poeta reanima γνῶθι σεαυτόν (“conhece-te a ti mesmo”), em que se nos impõem um relato, um conselho e uma tarefa. Saber quem se é se eleva ao maior trabalho de uma vida. O relato mostra o caminho da transformação e a radicalidade do retorno. O conselho indica a direção para onde se salta sobre os obstáculos caídos. A tarefa expõe a grandeza e a natureza daquilo que se espera realizar. Mas como vislumbrar a si diante de um mundo que se apaga? Como reencontrar seu próprio eixo, quando tudo o que fora a realidade se vem a obscurecer?
O tema que gostaria de propor brevemente me aparece a partir de um duplo ensejo: de um lado, o lastro poético de Borges, o qual adverte sobre o caráter encoberto da identidade e do conhecimento de si. Do outro, a reflexão ética de Ernst Tugendhat, exposta em sua fala nomeada “Identidade Pessoal, Nacional e Universal” (1996), em que o filósofo advoga pela possibilidade de um diálogo universal (entre os povos) em busca de direções comuns, ainda que preservando particularidades locais. O problema da identidade, como o coloca Tugendhat, estrutura-se pela constante urgência de permanecer em avaliação e atividade. A identidade é como que um eterno exercício reflexivo por meio do qual se definem, momentaneamente, os horizontes, o perfil e esboço do humano. Expõe-se como uma sequência de questões: “o que sou?”, “o que quero ser?”, “como quero ser?”. Notadamente, a atividade inteligível de decisão reclama a autoridade do intelecto e a possibilidade de diálogos entre pares. É um exercício que depende do comprometimento e de reciprocidade, revelando o sentido político da sua condução. Contudo, ao lado do aspecto político, há ainda um outro mais basilar, mais alicerçador e medular, evidenciado apenas ao fim daquele texto do pensador tcheco: o cunho afetivo que o subjaz. Há uma espécie de ‘não razão’ que cuida de justificar a simpatia que permite o diálogo ético-político, e essa ‘não razão’ é a importância afetiva que serve de teia para as relações e garante a assemelhação mesmo entre a diversidade étnica e cultural das sociedades.
Trago como exercício uma ideia muito simples, ainda que incipiente e obscura: algo como um “solipsismo amoroso”. “Solipsismo”, porque trata do trabalho de uma vida, o qual atravessa a questão da identidade e se engrandece no patamar quase lírico da busca de si, uma espécie de individuação e de uma apologia da radicalidade da pessoa (mesmo contra o mundo que o estabelece e anima). “Amoroso”, porque envolve igualmente um profundo e enérgico desprendimento de si, uma aproximação das coisas que não se nos compõem, uma sensibilidade, valorização e compaixão para com aquilo que não somos e sem o que não podemos nos aproximar de nós mesmos.
A chave deste pensamento está justamente na sua formação antitética. A radicalidade do individual e o desprendimento de si se interpenetram em um movimento transfigurador. O pensamento ético se estabelece na tensão desta antinomia, e se modifica junto à dinâmica subjetiva que se arranja continuamente por meio da sua própria transfiguração. A ética é alguma coisa que pode coroar a busca de si, assomada pelas abnegações que compõem o caminho do homem que permanece em transformação. Por isso, γνῶθι σεαυτόν não significa uma via pelo egoísmo, mas ao contrário. A individuação, a qual está aberta ao porvir, realiza, no amor, o desprendimento do que é para que possa vir a ser. E ao se desprender, vislumbra nos outros homens a sua mesma busca. O sair de si para se reconhecer nos pares é igualmente uma coisa do amor, e como tal, um passo para o conhecimento do que se é.
O trabalho de uma vida, γνῶθι σεαυτόν, articula-se no confronto entre ‘ser o que se é já’ e , assim como recomendou o poeta Píndaro, ‘tornar-se o que se é’. Uma disputa entre a persistência e a mudança, uma força negativa e outra afirmativa, um jogo de claro-escuro que obriga a uma diligência e a uma disciplina sobre a tarefa incessante de conhecer a si mesmo.
Emil Cioran identificou como uma das características da modernidade o fato de que a vida das pessoas passou a ser balizada por realizações exteriores. A proeza contrária, a realização como uma edificação de si, perdera, assim assumiu o filósofo romeno, quase todo o seu sentido. Para Cioran (2012b): “em vez de tender na direção de uma presença brilhante no mundo, de uma existência solar e cintilante, em vez de viver para ele mesmo — não no sentido de egoísmo, mas de crescimento interior — o homem tornou-se um servo pecador e impotente da realidade exterior” (2012, p. 124). Exige-se, na direção oposta, uma sorte de coragem ou pujança para enfrentar as complicações de um trabalho cuja consumação não se materializa, nem pode ser medida. Um ofício cuja dificuldade ainda não se pôde diminuir ou abater, porque é o problema mesmo do ser humano vivo. Um exercício que faz ponderar sobre as coisas todas do mundo, e que se sobrepõe às particularidades do exterior. Na cegueira de Borges, em que todos aqueles elementos que confluem na infinita distância de seu passado (e de todos os passados), chegamos ao centro de nós mesmos. Um centro que aponta ao destino do que somos e devemos nos tornar. Um eixo que insinua a própria unicidade da busca humana por si.
Juan Gelman, retratado por Galeano em seu Livro dos Abraços (2002), pergunta-se sobre quem são seus contemporâneos. Não são aqueles que vê por várias cidades do mundo, pois “têm cheiro de medo” (2002, p. 123). Mas encontrou, subitamente, a coragem num poeta antigo e em dois de seus personagens cantados em verso, mesmo que todos eles pertençam a um tempo imensamente longínquo. A decisão de Gelman e a sua bravura para, sensivelmente, identificar seus contemporâneos (para além do marcador cronológico), é um ato de sabedoria e uma abertura para os desdobramentos éticos do conhecimento de si. A breve apologia da coragem na vida tecida por Galeano, utilizando-se da figura do poeta e jornalista argentino, descreve o que se espera como valor humano e como postura diante das intempéries do contemporâneo. Assim se aponta como queremos a nós mesmos, como precisamos da vida e do valor de outros pares que nos auxiliem na resolução do maior e mais grave de nossos paradigmas: tornar-nos o que somos.
Como uma conclusão para este breve ensaio, gostaria de recuperar o tema do encerramento de Tugendhat (1996) em seu supracitado escrito. Na ocasião, o filósofo terminou o texto com a citação de um conto causídico em que um rabino, como um ensinamento a seus alunos, revelava a importância de olhar a qualquer rosto humano e de reconhecer nele um irmão ou irmã (Cf. 1996, p.18). O valor desta passagem não está meramente no seu sentido mais objetivo, o de um reconhecimento e valorização da coisa humana entre qualquer indivíduo que se nos confronte. A sua magnitude está também na antinomia do feito: a revelação do outro como fundamento para a de si mesmo. A humanidade achada nas dessemelhanças dos pares sugere um centro oculto que é a identidade não materializável do que somos. E então, tendo os olhos já obscurecidos, encaminhamo-nos para o encontro sem horizonte com o nosso “tornar-se”, com o nosso destino. Através do caráter simpático da busca de si, uma revelação se insurge por entre os prazeres da penumbra: breve conheceremos a nós mesmos.
Ilhéus, 15/01/2020

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BORGES, Jorge Luís. Elogío de la Sombra. Ediciones Neperus: Buenos Aires, 1969.
CIORAN, Emil. Exercícios de admiração. Rocco: Rio de Janeiro, 2012a.
____________.  Nos cumes do desespero. Hedra: São Paulo, 2012b.
GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. L&PM: Porto Alegre, 2002.
TUGENHADT, Ernst. Identidad Personal, Nacional y Universal. Ideas e Valores: Bogotá. No. 100, Abril, 1996.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Terapêutica

Aquilo que virá
terá como destino
justificar a tudo.
O que perseverará na noite,
— aí estão as garras do esquecimento 
vindo do dia amargo
em que nada se preserva?
A minha sina é viver assim
como um escravo da fortuna
insondável!
Um fadário com requintes
de mimese.
Palco para onde tudo retorna!
Personagens de mim
com semblante trágico.
Todos incapazes de sobrepujar
o próprio enredo.
Prostro-me à margem do rio
e meu coração está tão triste!
Aprendi com o poema
a arte de trazer dos mortos
o que a morte nunca matou:
o meu Lázaro da alma!
Ele lamenta o regresso...
"Perdi a Amada
que me afagava
no derradeiro sono".
Lázaro chora
e em suas lágrimas
consigo viver.

Ma chère

Há somente uma silhueta.
Não a posso ver por entre a neblina
sem fronteiras.
Apenas o nublado de um céu oculto,
velado ainda mais
por este meu crepúsculo clandestino.
Um futuro,
a linha de um horizonte encoberto,
dissimulado pela angústia de não ser visto.
Uma luz parca que se sobressai,
por entre os véus escurecidos,
ameaça a integridade do secreto
tão logo se me atinge
...penosamente.
O contorno se transmuta,
de incógnita até quimera
e de quimera até alguma coisa
alguma coisa assustadora e bela.
Queixo-me, estremecido:
"C’est trop rapide, ma chère"
e sinto muito medo.
Há qualquer coisa em seus olhos,
porém,
que me acalma.
(Ouço a melodia que se insinua por eles)
"Tout va bien
Tout est beau et calme".

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Meu nome

O sentido que se esconde
por detrás do que me chamam
está no que sou
por entre as teias imemoriais do mundo.
Minha mãe se chama Alice
pela sombra esvoaçante de sua avó.
Acho isso muito belo.
Eu nasci pelo nome de meu pai:
palavra que guarda laços antigos
e invisíveis
que se movem cegamente ao horizonte
do porvir.
As ondas carregam no tempo
raízes remotas,
desejos recônditos!
Atravessam o coração dos corações
de todos aqueles que sustentam meus pés
e apoiam as minhas costas,
o meu tronco da alma!
Mil outros vivem na voz
que me invoca.
E os nomes confrontam a solidão
da eternidade.

terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Metafísica da insônia

Dorme aquele que vive sem pesar.
Vige o aturdido,
o malfeito,
o abalado.
Falecem somente os vivos,
porque o sono é a dádiva cotidiana
da morte.
Já os insones assistem
à perpetuidade cruel da vida
à invenção das horas
às trevas contritas em oração.
Fadiga constante!
O repouso é o simulacro do nada
que nos antecedeu a todos.
Urgência transcendental
ou desejo metafísico?
O sossego que descansa
é a modorra que sugere
o sentido profundo do adormecer?
Cansaço e revelia:
O desperto quase búdico
emite um alerta homérico
de uma valentia orgânica
ante as raízes coléricas
de nossa pujança.
Viver contra a vida!
Covarde, assassino de Morfeu.
Triste peripécia,
a sua fatalidade insônica.

domingo, 29 de dezembro de 2019

Retrato de uma mercadora baiana

Posso ouvir o frêmito que se desprende
da sua pele
O rumor que se transmuta pela gentileza total
de seu gesto
graciosa!
suave,
linda,
a coisa do seu jeito
o modo com que o ato se vê agigantado
até a afável sutileza
que o torna muito mais
pelo seu corpo:
mais do que a quimera distinta das paixões
mais do que os poemas dos mil e quinhentos
mais do que a musicalidade das bachianas.
Bem-feito é seu tudo
e o dom de crescer por meus olhos
até a perfeição.
Posso sentir a arquitetura dos seus mistérios
e o anseio
o ocaso de meu coração
diante do impossível deste canto.
Alguma coisa de lamento
alguma coisa de infinitamente simples
vem complicar os vértices desse meu retrato
e confronto a angústia tênue de lhe contemplar
silente
de para sempre lhe contemplar assim.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Pensar contra si

Chega um tempo em que não se quer mais ter tempo:
Tudo é um desarranjo essencial e falta.
A inutilidade do amor não se resulta nem se espera
E os olhos de Drummond que secaram,
junto ao seu coração,
agora estão fechados.
É um tempo de solidão sem luzes
de um desconhecimento lúcido de si.
Uma coisa desavisada que mata os próprios pares
e luta na eternidade do mal-querer.
Um tempo anti-fraterno e rude,
momento em que a criança e o velho em seu peito morrem
e se esganam em pura descomunhão.
Os dias, as miradas, as músicas
os mundos límpidos de suas ilusões de repente se subtraem.
As guerras, as fomes e os edifícios não mais prosseguem
e as liberdades se voltam contra o liberto.
Os delicados, num espetáculo, esquecem da vida
E a vida sozinha nada ordena: há apenas mistificação.
Vige um equinócio imenso aqui por dentro
E tateio qualquer outra coisa para que possa ser.
Penso contra mim e lembro
que a insuficiência é a via perene da iluminação.
Perpétuo não ser, meu monumento.
Templo colossal do que não quero.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

O poema prometido

Tenho vontade para criar um mundo
Um anseio que se trepida sobre a glote e retorna
vivo e morto ainda por não ter nascido.
Quero-o olhar de frente!
Estou ansioso como se esperasse um parto
Algo vai nascer por mim...
Tenho uma pujança que me salta da pele
E acredito mesmo nas volúpias de meu coração.
Estou intranquilo!
Pulsa-me forte o gérmen lírico da realidade
Quero inventar as terras novas,
pois Pasárgada já passou!
Para onde hei de me ir embora?
Tenho um futuro...
E a via é aberta pelo corte limpo da palavra.
Abre-me o mar vermelho de sangue!
Passo sozinho rumo a minha própria Canaã
Venha-me o deserto...
Caminho por todas as décadas
em busca do poema prometido.
© Odisseia do adeus
Maira Gall