quarta-feira, 27 de novembro de 2019

O mal como mestre


A doença me aparta de mim mesmo.
Oculto o tempo orgânico da vida
Mostra-se a face corrupta.
Retalhado o amor expansivo
Diminui-se a visão para fora
mas adentro tudo se agiganta.
Percebo órgãos e impulsos
Desejo as pazes e os sonos.
Onde estava todo esse corpo
quando os dias eram os mesmos?
Misteriosa semente dos pensamentos
A mazela me constrange ao mundo.
Distúrbio que revela
Moléstia que alteia
Achaque que arvora.
Nada parece o mesmo
Nem mesmo aquele céu risonho
Cuja timidez manifesta me devora.
Anil puro e desperto,
nuvens esparsas,
algum sonho que é meu se enfurece
abatido nesses ares firmados
— limites enfermos do globo —
padece, meu Deus, na tosse cinzenta!

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

O Poeta-Coração


Não conheci Firmino Rocha. O destino não o quis. Digo que não o conheci, mas o mais correto seria dizer que jamais pude me deparar com seu rosto sóbrio de verdades esquecidas; nunca lhe toquei os dedos suados num fim de tarde em Itabuna; nunca pude ouvir sua voz que se erguia como rumor nos ares grapiúnas. Ao contrário do que afirmei, sim, conheço Firmino Rocha, porque vivemos o mesmo tempo. Somos contemporâneos, assim acredito, pois vivemos o afeto e o coração por meio da ingenuidade mística da criança. Comungamos a fraternidade que só a delicadeza do poema pode despertar. Irmãos! Assim o quero e assim o aprecio! Como o Juan Gelman enunciado por Galeano, olho para homens e mulheres ao meu redor e não vejo contemporâneos. Mas lá está, nisto que chamamos passado, a beleza intemporal do lirismo de Firmino, graça que me abraça e me faz viver, orienta-me ao poema.
Agora, quando finalmente me pego pensando sobre como desenvolver este pequeno escrito, lembro-me de tudo o que compôs Firmino em minha história até que sua poesia se fizesse forte, insuportavelmente forte em meu coração, para fazê-la ecoar por mim mesmo. Veio-me a lembrança do primeiro canto, do seu primeiro canto a contagiar meus ouvidos: Deram um fuzil ao menino. Os anos em que o mistério de suas cenas, a força imagética de seus versos, os cultos silenciosos ao íntimo, ao hábito microscópico, ressoaram sem cessar em meio ao caos de meu temperamento. Estive sozinho neste seu canto, e assim se passaram os meses e se fizeram anos, tempo suficiente para que meu próprio espírito estivesse disposto a caminhar ao lado da poesia.
Comprei um livro. Vivi a trajetória lenta, paciente, de sentir seus encantos, de rememorar suas lembranças, de lamentar suas tristezas, de me apiedar de seus desencontros, de me extasiar com suas ilusões. Lê-se Firmino Rocha em doses, num ritmo sereno, numa intensidade crua de quem aprende vagarosamente a amar a vida. Ler sua poesia é se desfazer de qualquer regresso, é se dispor a cantar a eterna novidade das lembranças. Só é possível sentir o ímpeto de seus versos na medida em que cada um deles passa a tratar de quem os lê. Só é possível comungar do afeto calmo de Firmino, quando nos permitimos provar das ternuras dos nossos corações de menino. É preciso ver através da poesia. Vejo, portanto, através das lentes que são minhas mãos, e vivo no poema o gérmen lírico da realidade.
Na poesia amorosa e simples deste itabunense, vislumbrei purezas impensáveis. Na sua ode ao amanhã, O canto do dia novo, a primavera que nascerá encontra as flores mais distintas. Nunca havia visto uma ternura tão genuína. Nunca havia sido tomado por sentimento tão sincero e primordial como por meio das palavras misteriosas deste homem que foi e é muito mais do que meramente homem: coisa do amor, sábio, mensageiro, místico, poeta. O destino o quis. Coração grande demais para o presente, este tempo que nada é. Radical oposto: tempo que nunca passou… tempo do amor. Eis o que é, como joia mais rara e bruta, o íntimo de Firmino Rocha. Oposição total ao tempo como progresso, porque uma entrega total ao tempo como afeto. E neste mundo de puro afeto ainda vive o poeta, e nunca morrerá, assim como não morre o poema. E só lá podemos o encontrar, aberto à visita dos sensíveis, dos que se enternecem, dos que compreendem a magnitude da espera pela palavra imersa em total silêncio. Firmino Rocha ainda fala aos que ouvem os murmúrios gentis que se velam na mudez aparente do mundo. Ele toca e aquece o peito de quem muito ama, ainda que em solidão. Não estamos sozinhos, não estamos sozinhos. E talvez a sua poesia - um erro, a poesia não se detém -, talvez a poesia que por ele nasceu, seja ainda capaz de se tornar caminho e destino para quem assim a pressinta profundamente.

***

Não se examina a bela rosa do jardim. Ela definha quando a cortamos o caule para investigar qualquer banalidade exigida por nosso intelecto. A mesquinhez do erudito é invasiva, irresponsável e mortificante quando se debruça sobre a graciosidade das coisas simples. O sábio, por sua vez, já venceu a rudeza do espírito. Alma mais que tudo, conserva a excelência do bem viver. Aquela rosa é Firmino e também este sábio. Em 1968, um colunista chamado Adroaldo Ribeiro Costa escreveu num jornal sul-baiano: “Muito obrigado, Firmino. Não analiso a sua poesia, não. Para que? Quando encontro uma linda flor não cogito de classificá-la: enlevo-me com sua beleza e seu perfume. Só”. Enlevando-nos pelo canto de Firmino compreendemos um pouco sobre a pureza, sobre a harmonia, mas também sobre a enorme e grave tristeza da vida, pois seu poema é “marcado pelo sofrimento e pelos densos efeitos de entre tons de sombra e luz de sua alma atormentada”, como escreveu Bartholomeu Brandão no preâmbulo de Momentos: Prosa e Canto. Há ainda de se ressaltar o valor literário, além do sentimental e extático, da obra do poeta grapiúna, alteada por um dos grandes críticos do século XX, Otto Maria Carpeaux, o qual, ao ler alguns dos poemas de Firmino, sentenciou: “Lorca assinaria estes versos”.
Pela inspiração e pela lisonja que se aviva em fabulações nascidas da pequenez sul-baiana, surge um sentimento lírico, fantástico, em que o messianismo ganha corpo e faz pensar na estranheza e misteriosidade desta terra grapiúna. O que dizer de Ruy Póvoas, alguém que, pensando na fisionomia espiritual itabunense, perguntou-se como haveria de ser se, ao invés de Itabuna, fosse sua terra a Grécia?: “Certamente, fosse aqui a Grécia e Firmino Rocha seria Homero. Pelo menos, uma Ilíada ele construiu: Deram um fuzil ao menino”. Elevemo-nos a este pensamento! Fosse Firmino Rocha o Homero baiano, de qual Ocidente seria o pai? Quais Antiguidades, quais Peloponesos, quais Cristos, Inquisições, Navegações, Iluminismos, Romantismos e Ciências se despertariam a partir da flama e do ensejo completamente amorosos que brilham pelo coração de Firmino? Quais guerras, quais ódios, infâmias, traições, mágoas e desesperos se decantariam ao sentir a aurora singela renascida por seus versos? A extrema ingenuidade do que escrevo me assombra. Jamais poderia ser Firmino o pai de Ocidente algum, pois nenhum Ocidente trágico é suficiente para marejar os olhos dos homens, nem para entoar os cantos do poeta! Nenhum tempo se iguala ao corte místico da intemporalidade sagrada que resguarda a Amada, flor eterna que desabrocha na primavera do porvir. Tempo algum contém a ternura que se interpassa infinitamente pelos solitários, e que nos beija os lábios quando choramos, e que nos toma as mãos quando caímos.

***

Firmino Rocha faz lembrar das extremas minúcias do cotidiano. Remete-nos aos risos da brincadeira de roda, aos afagos consoladores dos amantes, às cores que reivindicam o mundo quando surge, enfim, o crepúsculo. Uma jovem mãe entra no coletivo com seu filho ao colo. Ultrapassa a catraca e o balanço do ônibus desperta a criança: olhar de infinita brandura, a pequena cabeça contra seus seios, mão calorosa sobre a face minúscula. Zelo total, a paz se estabelece em uma afinação silente. Sorriso de absoluto contentamento. Ali está Firmino, todo doçura, a lhes contemplar o carinho e a bendizer a aurora que os conduziu ao amor. Ele abraça ali a todos: aos pares que de repente se dão as mãos, aos amigos que se reencontram e já não suportam a saudade, aos sensíveis que lamentam os sofrimentos do mundo, aos simples que agradecem humildemente, aos desesperados que se exasperam, aos justos que se indignam. Maravilhoso é o templo que se abre para essa poesia das brevidades, coisa que denuncia o sentimento transversal e solidário da afabilidade.
É o Poeta-Coração! O canto do dia novo não é apenas um livro de poemas, é um conjunto de ensinamentos, de mensagens que se encaminham ininterruptamente ao amanhã. Um destes grandes ensinamentos é explícito: Marca a palavra com a lágrima do Amor. “Poeta,/ marca a palavra com a lágrima do Amor/ E segue o teu caminho/ Serenamente./ Serenamente./ Verás como é verdade, pura verdade, a tua mensagem./ Verás como virão ao teu encontro as flores mais belas, as flores mais humildes./ Verás como se deixarão descobrir as fontes mais castas./ Quantas estrelas nascerão na tua noite!/ Quantas canções escutarás do teu silêncio!/ Poeta,/ Marca a palavra com a marca da tua Alegria./ E sorri para teu irmão./ E espera a tua amada./ E canta teu Poema”. Novamente como sábio, Firmino Rocha compreende e transmite a mensagem pela mais pura auscultação. Ele entende e orienta à paciência, à calma, à serenidade lírica, ao silêncio, à mais bela espera. “Não acordar a palavra./ Deixar que ela sinta no silêncio/ os frêmitos de todos os mistérios/ Até o último instante./ Nova e virgem então ela virá/ e ao poema dará seiva e fervor./ Não acordar a palavra./ Deixar que ela durma no silêncio/ o seu fecundo sono./ Até que como o sol desperte/ e descubra as coisas/ e nada deixe em escuridão e frio./ O poema então será verdade,/ amor e caminho”. Na madrugada se manter vigil, resistir à solidão máxima da escuridão, até que enfim a palavra surja em meio à fulguração total da aurora. “Ouvir o canto da madrugada/ O canto suavíssimo do caricioso silêncio/ e das mensagens do sono das coisas escondidas./ O canto prenhe de pureza/ das águas encobertas/ e das emudecidas ramagens/ O canto de Deus./ Ouvir o canto imenso,/ o canto eterno da madrugada./ E tudo amar”.
Firmino é um gesto de amor para a poesia baiana, é um acalanto de extrema ternura que nos faz desejar a bondade. E o que é a bondade? Não, que pergunta fria… o intelecto sempre insiste em reclamar a autoridade. Sinto a bondade pela comunhão com o amigo. Sinto o afago das carícias sutis de meus irmãos. Sinto a gentileza de um raio do sol que se esforça em iluminar a terra fria pela manhã. Sinto a chuva a nos amparar delicadamente em um momento de introspecção. Sinto a força daquela senhora que trabalha, ainda que com dificuldade. Sinto o sussurro daquele jovem que se decompõe em incertezas. Sinto o calor de um dia de sol e o que se emana do povo belo que me circunda. Sinto o afeto do generoso e a solidão do poeta. Sinto a maré que se quebra sem jamais se deter… e sei que isso é bondade. Firmino Rocha é o simples que denuncia em sua singeleza a coisa cotidiana do amor bondoso. E nos provoca, e nos incita a o admirar. Quero, como ele, toda esta poesia que nasceu com o mundo! Quero também tocar o tecido macio e íntimo que sustenta os sentimentos do porvir! Quero, também eu, tudo amar! Que Firmino, de poesia, torne-se tempestade, e desperte a chuva mais amorosa para inundar os corações de todos. Que lave a maldade a nos ocultar os sonhos. Que se faça, aos amantes, caminho e destino!

Salvador, 31/10/2019.

Néctar



Fui uma abelha
sem querer.
Fui um poeta entre nós dois
e isso só trouxe desconsolo.
Digo uma abelha
porque você foi a flor
cujo néctar eu extraí como pude.
Matéria prima total,
seu fluido era todo lírico.
Fiz de nós o espaço e o poema
e isso nos matou aos poucos.
Tive fome.
Minha colmeia não se acabou,
é uma empresa eterna.
Você sorriu em flor e nada temeu.
Isso é belo, ainda que triste.
Nenhuma abelha pode escolher amar jamais:
o néctar é tudo
a obra é a sua vida.

Testamento II


Voltei a ler o Testamento, de Manuel Bandeira
(Já escrevi o meu uma vez,
ou uma centena de vezes?)
E retorno ao sentimento lânguido
das flores simplesmente mortas.
Procuro “meu filho que não nasceu” em meu peito.
Gosto igualmente de crianças,
mas talvez não tanto ao ponto de as gestar em intimidade.
Venho a mim e me oponho ao poeta:
tenho também essa coisa da poesia?
Essa coisa que arrebata ao seio do destino?
Essa coisa que suspende a alma sobre os homens
e se apieda, e se lisonjeia, e se compadece?
Eu não sei, hei de fazer um testamento diferente.
De meus outros cem, perdi as notícias.
Foram ao fim do mundo, aos bueiros,
como tantas outras coisas que já fui.
Morri ontem quando deitei sozinho e estive triste,
e hoje revejo os pontos de uma folha em branco.
Faço dessa folha o meu legado e a rasura de um futuro.
Da rasura nasce uma queixa que se enternece em uma prece.
Desta prece uma aposta que se eleva até o mito.
E o mito, a aposta, a prece, a queixa, a rasura e o futuro não são nada.
Meu testamento sendo um nada cem vezes,
a solidão, um nada que se constrange,
meu devaneio, uma poesia que se percebe só.
Harakiri lírico, mil lutas eu não lutei.
Campo infrutífero, nenhuma terra brotou de mim.
Um pandemônio da Bahia até Pernambuco...
Quero seus olhos fatigados,
Onde estás, Manuel, para me ensinar a usar esse papel amassado?
Do poeta menor ao microscópico!
Ai, Senhor!
Perdoai!

Nota preliminar a um livro seu



Agora você tem em mãos o meu peso
o frêmito que produzi ao virar a primeira página
o sorriso que esbocei ao gostar do primeiro verso
o sem-jeito de meu suor ao me recordar de você.
Agora você carrega consigo o meu traço
a forma estranha com que seguro o lápis
a maneira ímpar de minha mediocridade
a ponta cega com a qual circulei o número das folhas.
Agora você não pode, ainda que consiga de fato
apagar o rastro de minha presença.
Você não pode soprar os restos de pó
de carinho ou contemplação
despejados num suspiro sobre as linhas.
Você não pode sacudir as vestes do passado
muito menos tragar até o termo o fumo do destino.
Você não pode abrir esse maldito livro
belo, ainda que muito novo e muito experimental,
livro de poesias,
e não se mascarar de mim
e não vislumbrar com as coisas da minha retina
o que eu provavelmente mais achei fabuloso
ou o que mais achei fraco e vulgar.
Agora você não pode mais, ainda que haja como
ocultar a vida que emprestei ao papel incólume
secar as veias que nele despertei pelo sangue de meu próprio lirismo.
Agora você detém uma fagulha sempre disposta
um prenúncio de lembrança
uma memória involuntária
que vai voltar
e vai nascer infielmente
como corolário de tudo o que,
no futuro insofismável do que imaginei,
já morreu.

Confusa mecânica dos astros em seus olhos



Ai, as suas maneiras se embaralham
Não há humor que suporte essa rudeza transladada
O seu jogo temperamental e injusto.
Meu peito sendo a terra
O seu, a lua
E essa coisa da nutação que é também sua façanha
E que faz oscilar meu eixo, orientando-me a você
Sendo que tudo o que te faz ser o que é
É a coisa caprichosa e seca da lua sozinha
Contraposta ao rubor gigante disto que sou eu
A terra, infinitamente habitada de ardor.
Tão pequena, lua orbitada
Gira influente a me deslocar
da eternidade cêntrica jamais consolidada.
O jeito obtuso com que me aborda
A forma global com que me satisfaz
A trama fugaz com que se personalizam as luzes
de seu mais profundo olhar perdido.
Nada me torna capaz de deter um feixe sequer
E somente na noite me ilumino por um segundo
disso tudo que é seu e perpetuamente distante
E que sendo distante vive perpetuamente contido.
Alcova, montanha altíssima!
Há uma coisa que me puxa e empurra
E as leis ainda não dominaram a força inapelável
desse instante de amor.
Há uma coisa grave, que não sendo gravidade
ainda move os salões do tempo para além dos rumores
desconhecidos...
O infinito do espaço se apequena e eu vejo
Eu vejo nas reentrâncias de seus olhos
um grito de lua
E talvez os medos cessem e os mares flutuem
E venha por aí um alinhamento qualquer
E talvez...

Solipsismo baiano



"Quero que digam: ele sente profundamente, ele sente agudamente".
Escreveu sobre si, uma vez, Van Gogh.
Ao contrário de Van Gogh, eu sou baiano.
E, sendo baiano,
tenho a mania de sofrer em versos.
Assim,
eu e ele
quisemos coisas muito diferentes.
Meu coração é alguma coisa que sente,
esparramado pelo mundo.
O dele, algum mundo que se sente,
acompanhado pela morte.
Na Bahia não se morrem os corações,
petrificados os corpos
definhados os músculos
e corroída a carne.
Resta além de tudo uma alma errante
dentro dos becos, no alto dos morros,
no mistério das esquinas...
Ensurdecedora terra de passados vivos!
“Quem sentirá tanto como eu a minha agonia?”
Perguntou, Boca a Boca, Nana Caymmi,
e sua voz quis verdadeiramente amar.
Não há outro grito mais grave
do que o que se eleva em sobressalto
de um amor tão trágico às coisas da vida.
Vige o mar revolto e não pisca o baiano:
"não há sonho mais lindo que a sua terra".
Não há coisa tão mágica e pueril,
não há nada tão gigante que não retorne,
mesmo em longínqua lembrança,
a ser sonhada pela terra que pariu Amado
e lapidou o Poeta do povo
para a eternidade.
Para sempre isso, baiano sozinho
Solipsismo baiano,
não entendo os "eus" do mundo,
Só sei o que é amar e ser triste.

Hierofania poética



Na palavra edifiquei o meu santuário.
Em meio ao caos não encontrei meus dedos
E pelos dedos os lamentos se rubricaram em mim.
A torre celeste que eleva o poema
Fez-se corpo e templo do meu coração às estrelas.
A total descrença que me obscurecia a visão
Tornou-se pétala e esmoreceu
no outono místico de meus olhos.
Sinto que agora vivo um pouco do amor
Amor renascido nesta terra fecunda do lirismo
Amor que ausculta mesmo meus temores mais íntimos,
os mais sóbrios.
O verso me salva de ser apenas eu
Porque eu sozinho não vejo.
Sou tão pobre que não creio, não gosto, não sangro!
Somente na poesia o mundo se me faz com valor
Como que recém tirado do sacrário da madrugada
E me empresta, por ela também, um sentido qualquer
Para ser meu
E para que eu igualmente o seja.

Fisiografia da tristeza



Eis que o mundo, mesmo num dia assim belo,
tem ainda qualquer coisa de triste.
E a tristeza me parece, ela também,
qualquer coisa de belo.
Alguma fonte imaterial de graça,
uma nuance de desarmonia que conduz a música
em sua perfeita dissonância.
Sofre um pouco, a tristeza,
do descaso amargo dos estetas.
Como se o desfecho sutil da ilusão
não revelasse a silhueta muda
e infinitamente triste
de nossas mais distintas desolações.
Como se o pesar gelado que se instala uma vez no peito
não desvendasse os sulcos inalcançáveis do real
onde ganham vida as manhãs e as noites da poesia.
Move o corpo o desconsolo
e convida a vida a se pôr sobre si mesma.
Preenche a intimidade da alma
e faz gemer os enternecidos.
Dá vozes ao mar e ânimo
para a onda que quebra, solitária, na areia,
e se desfaz bruscamente
e se deixa desfalecer em incessante retorno.
A ressaca sendo de tudo o mais triste,
inconstância que braveja sobre a paisagem,
coroada em motivo e fim último do que existe.

Tolice iminente



Na tolice iminente de meu futuro
Resido impaciente a tolher solenidades
Culto indistinto à megalomania
Provisão da jactância letal sobre um eu que não conheço
Odeio-me!
Guardo os cacos de um vidro irreflexo
Lascas infrutíferas do meu ego todo opaco
Parcelas de um excerto vazio
Fração de desamparo
Fiasco!
Vivo no aguardo do que nunca me acontece
Passadas enormes e uma distância infinda
Angustio-me no deserto de minha superficialidade
Busco o cume de um monte que não há
Nunca houve
E não há de haver
Vide a insustentabilidade cruel de meu espírito.
Corro os dedos para fora da face
Da Terra?
Ou daquela tristeza cósmica
Cujo semblante é a marca mesma do que sou?
Meço as grandezas de minha alma
E não há ninguém ali.
Sucumbir diante da inanidade irreparável?
Dobrar-se frente ao todo
Perante o qual sou pouco mais
(ou nada mais?)
Do que uma vileza pueril?

Amendoeira absoluta



À sombra da amendoeira, no alto do morro
Vovó, Dona Maura, Tia Tita, Mamãe
Quão doce era a verborragia cotidiana...
O mundo se me revelava tão prontamente!
Nas tardes tórridas em que mesmo o poeta fecharia os olhos
Para repousar sob a salvaguarda daquelas folhas ruivas.
A saudade é rubra!
Tenho também o coração vermelho daqueles dias
Nos quais minha voz era mero balbucio
E meu rosto um simples ensaio do que nunca me tornei.
Tenho os lábios corados e a pele se me escapa
O pensamento cetrino tinge o horizonte do que fui.
Minhas palavras saem daquelas bocas semicerradas
E fico sendo o último apelo de Vovó antes de escurecer
Ou o céu cujo escarlate esparramado precedia as dezoito.
Fico sendo a meiguice de minhas irmãs ainda moças
Ou o riso do meu primo em sua infinita pilhéria.
Saudade purpúrea...
Sofrem em mim os passados de todos!
E se me tornam cantos e choros de um girassol carminado
E dão seiva à rosa encarnada que nascerá amanhã
Cujo sangue sustenta meu íntimo carmesim
O centro oculto de um destino
Meu contínuo e sincero coração de menino.

© Odisseia do adeus
Maira Gall