Esboço a uma aproximação intuitiva da baianidade
O
feitio baiano, a sua própria compleição é oracular. É um temperamento das
coisas, é uma índole da revelação. O baiano não é tipicamente escrutinador, seu
gênio não é compatível com nenhuma sorte de ciência. Pelo contrário, seu caráter
tem qualquer coisa de erro, de vacilação, de inconstância que o faz inimigo das
coisas certas. Essa coisa da baianidade, e que é aquilo que a aproxima das
modulações místicas do canto, transforma a fisiografia do humor baiano em um
apelo por Geopoesia.
É
oracular essa cognição que intimida a tenuidade entre o vigil e o onírico, esse
espírito de João Valentão[1],
que não precisa dormir para sonhar.
A
fisionomia espiritual baiana, com suas dessemelhanças protagonizadas sobretudo
pelos espíritos soteropolitano e grapiúna, constitui-se morfologicamente por um
estilo de vida mágico-cético. Ora, composta de dois elementos contrários, a
estética baiana se desenvolve numa sorte de armadilha antitética em que a
experiência mágica se trepida sobre um excelso senso do fugaz. O espírito
baiano consegue consolidar o absurdo de um temperamento ao mesmo tempo
exuberante e fugidio. Por vezes sublime, por vezes ápice de lucidez, mas sempre
imbricado a uma inigualável sensibilidade mágica.
Mestres
em viver e usufruir da ilusão, concebem igualmente todos os níveis de seu
artifício, como em uma verdadeira cosmogonia das aparências. De certa forma, a
baianidade funda e escrutina a mitologia das quimeras em que atua. Tendo
herdado a comédia muito trágica dos europeus ibéricos e o humor de magia
colossal de indígenas e, mais apropriadamente, de africanos, o feitio baiano
apresenta uma tendência burlesca. Perfídia contra as formalidades europeias,
impostura na tensão irregular entre si e o indigenismo (entre o medo e a
aversão), calor amargurado da triste peripécia africana: tornou-se o
temperamento do flerte, do acaso, da secura, mas irremediavelmente de uma
profunda e fecunda tristeza que elevou e tem elevado o sentido oracular baiano
a suas maiores proezas.
O
mágico-ceticismo baiano rumina indefinidamente um canto que desafia o tempo. E
todo cantar desvanece sem um profundo sofrer… Por isso a baianidade também se
confunde com a arte de amar, na qual a perturbação espiritual de sua antítese
subjetiva eleva os ânimos até uma exortação ao sofrimento. Instituto do amor
maior, o baiano é discípulo do coração e devoto de suas mortalhas.
Inconsequente ou pessimista, entregue ou trágico, manifesta uma abertura para o
afeto intemporal: “O tempo que nunca passou./ Sê ele/ Sê o tempo do amor”,
disse o poeta-coração. “Marca a palavra com a lágrima do amor” (ROCHA, 1968, p.
69)!
O
conflito subjetivo da baianidade permite a edificação de sua estética oracular.
Na sua “oracularidade”, as coisas se revelam como num sussurro místico, fonte
das mais caras criações. A revelação criativa não é, contudo, nem pode ser,
exclusividade de qualquer estilo de vida, senão que é coisa do lirismo geral, ordem
atemporal familiar aos grandes do mundo. Entretanto, no caráter baiano há
alguma coisa de auscultação, de extrema delicadeza, que o leva a se inclinar
intimamente à noite, aos “frêmitos de todos os mistérios” (1968, p. 27), como
dizia o amoroso grapiúna Firmino Rocha. Ouve, então, e espera com sua
amabilidade a ternura mais distinta, e se torna poeta.
***
O
principal exemplo da desconjuntura subjetiva do baiano é o desenvolvimento
quase paroxístico do marxismo no imaginário local. Como uma cultura tão particularmente
mágica poderia se filiar a uma filosofia anti-religiosa? Ao meu ver, o maior
representante deste singular conflito íntimo é o escritor Jorge Amado. A
oposição categórica de princípios entre um estilo de vida exuberante e
vivificante como é o mágico, cheio de sem-sentidos e obscuridades, e outro
claro, soteriológico e científico, como é o marxista, sustenta os pesadelos de
muitos latinos aproximados do ideário otimista, mas se desenvolveu muito
fecundamente na literatura amadiana.
Vemos
com clareza o aludido conflito em variados exemplos de sua obra: Mar Morto, Pastores da Noite, Tenda dos
Milagres, ABC de Castro Alves ou Terras do Sem Fim. Em todos esses
trabalhos há uma descontinuidade mirabolante em que o mágico de repente cede o
seu lugar à guerra de classes, à urgência das desigualdades e à perspectiva de
uma mudança desestratificante.
Qual
seria a conexão simbólica entre toda a mística da relação Yemanjá-Guma, em Mar Morto, marcada sobretudo pela
atração total, pelo irremediável da fatalidade mágica, e a ascensão repentina
de Lívia com sua brusca tomada de atitude, representação óbvia de um lampejo
otimista? O que dizer do desconcerto nascido da dissonância entre o ambiente
exuberante e quase-totêmico da Mata de Ilhéus em Terras do Sem Fim, quando confrontada pela dureza materialista da
crítica aos privilégios, à desigualdade, o que certamente é a substância toda
da continuação narrativa nomeada São
Jorge dos Ilhéus?
Como
explicar o fulgor lúcido em meio à sombra total e vívida de um Canto de amor à Bahia, quando do alto de
sua exaltação, Jorge Amado retrocede a narrativa, como a interromper
repentinamente um sonho: “Nem tudo é doce e poesia apenas, e o drama explode
nas ruas em enxames de crianças famintas, na multiplicação dos mendigos, na fome
em terra tão rica” (1982, p. 62). É uma terrível e implacável contradição! “Nem
tudo é doce e poesia apenas”, disse o poeta, o mesmo poeta que exaltou em
murmúrio cantado o tremendo do esboroamento mágico-místico: “É doce morrer no
mar...”. Tanta riqueza em uma linha! Um dito que mais parece um afeto, tão
transcendente e desconcertante que é para o simbólico das palavras. É belo e
sério. É doce e irremediável o hálito salgado deste abraço de sereia. Como
jamais esta coisa, que é a poesia em si mesma, poderia se opor ao sério, gélido
e triste, sendo ela também o desposar de tudo isso junto ao sublime, ao belo e
ao extático? Como conviver com fronteiras tão mal traçadas, tão vergonhosas e
dissolutas que não despertam outra coisa senão a fantasia e o interesse pela
profundidade de um gigantesco (e autêntico) disparate baiano?
Àqueles
para quem minhas palavras suscitam o aproximar intuitivo do âmago poético
amadiano, convido ainda a uma outra demonstração: toda a contradição do
mágico-ceticismo de Jorge Amado pode ser bem apreciada pela história de seu
personagem Pedro Archanjo, em Tenda dos
Milagres. Suponho que sentirão no aludido papel o verdadeiro sem-jeito, a
má explicação, o apelo ao “falso culto” que só um
otimista-progressista-científico poderia oferecer ao tentar conciliar
racionalmente a sua autenticidade ora mística, ora brutalmente lúcida. Pedro
Archanjo falhou em dizê-la, e, na mesma medida, foi bem-sucedido quando a
exibiu com esplendor e a fremiu, como determinava seu destino.
E
também penso que assim seja o destino de todos os grandes baianos, como foi o
de Jorge Amado: uma coisa de Pedro Archanjo, um mágico-ceticismo mal resolvido
que só pode fazer movimentar no espírito um desconforto que vem às vezes como
contemplação e choro, às vezes como ação e verbo. E verbo, choro, contemplação
e ação se unem em um turbilhão mítico no mais íntimo da alma e decantam, e
rubricam, e insinuam qualquer coisa de lágrima, qualquer coisa de angélico, que
é um rumor breve sobre os ares da Bahia. Há sempre um destino para um grande
baiano. E ele há de sempre o sofrer, de sempre o desejar enterrar no mais fundo
sepulcro do tempo. Contudo, e para o seu azar, o mais fundo é sua alma mesma,
perdida, como deve ser, em vacilações místicas que brilham na solidão profunda
de todo mistério.
***
A
essência da baianidade é o mágico-ceticismo, tendo a antítese como fonte de
fecundidade. O que há de plural não são “baianidades”, no sentido de múltiplas
nascentes para modos distintos de ser baiano, excluindo, portanto, qualquer
vestígio de continuidade e coincidência entre os modos de sua presença, mas
estados mais ou menos intensos e manifestações mais ou menos únicas de um mesmo
mágico-ceticismo. Desta forma, obtemos estilos singulares de baianidade.
Conseguimos, através desta aproximação, notar as enormes dessemelhanças entre o
perfil doce e insuspeito do lirismo grapiúna e a maternal, estrondosa e imensa
extensão poética do lirismo soteropolitano. Tudo isto igualmente baianidade,
tudo autenticamente oracular. Obviamente, ainda considerando estes dois polos
líricos da Bahia, temos que não se limitam exatamente a uma ou duas regiões
geográficas, mas são como pontos de convergência para os quais se direcionam os
temperamentos essencialmente mágico-céticos em busca de caminhos e de destino.
Que
se venha de Belmonte, Curralinho, Itajuípe, Canavieiras, Cachoeira, Santo
Amaro, Juazeiro, Irará, Jequié, Barreiras, Feira de Santana ou Vitória da
Conquista: o núcleo expositor do desembaraço poético baiano se observa em
traços significativos da pluralidade de feitios que compõem o mágico-ceticismo
soteropolitano, ou ainda bem o grapiúna. Em verdade, a baianidade
soteropolitana, em especial, é como um encontro fraternal dos mais diversos
estilos baianos, em que o espírito interiorano eclode e desemboca poeticamente
em meio ao mar gigante da cidade da Bahia. Salvador, liricamente falando, é um
abraço maternal de enorme gravidade. Não é exatamente centro cultural, é muito
além. Esta cidade é o templo mágico em que irradiam os cantos mais
profundamente líricos da Bahia. É o espaço vivo em que se incorporam e se
manifestam os mais altos chamados interiores.
Por
outro lado, o “grapiunismo” é talvez a expressão mais autêntica de uma
baianidade singular. Entre os grandes estão desde belas metamorfoses
morfológicas (no fim, representantes de toda baianidade), como Jorge Amado e
Adonias Filho, passando por Sosígenes Costa, Telmo Padilha, Hélio Pólvora, Cyro
de Mattos, Jorge Medauar, Valdelice Pinheiro e muitos outros do passado e do
presente de quem acabaríamos não fazendo justiça, até o que identifico como a
maior revelação do espírito grapiúna: Firmino Rocha. Este grande amoroso,
místico, ingênuo até o âmago do poema, sóbrio até os ossos de seu lirismo,
provavelmente jamais será considerado como protagonista da literatura baiana.
Entretanto, não há verdadeira sensibilidade que não sinta um embaraço
vertiginoso após o contato com a obra, ápice da delicadeza, do Poeta Firmino.
Firmino Rocha é o verdadeiro poeta-coração, uma ferida aberta cuja ternura
revolucionou o grapiunismo, expressão de seu cume. Nenhuma de suas criações
ocultou o mágico-ceticismo manifestadamente singular do espírito grapiúna. Há
sobriedade, há delicadeza, há crua inclinação para a auscultação lírica, há a
mais desenvolvida mística da poesia local, há profundo apelo social, há uma
ingenuidade quase onírica que se expressa como saudade e recordação dos seus
“luares de maio” e de sua “Rosinha”.
O
grapiunismo é um modo de baianidade cuja peculiaridade é a proeminência do trágico,
cultivado no mais profundo da alma regional desde os conflitos entre vila de
Ilhéus-índios Aimorés-holandeses até o escândalo sangrento da, mais
apropriadamente, formação grapiúna por meio do fenômeno do “chão de cacau”.
Assim Adonias Filho nomeou a particularidade do sul da bahia em seu Sul da Bahia: chão de cacau (uma civilização
regional). O regionalismo grapiúna é notório, e não de agora. O espírito
quase megalomaníaco e pretensioso, que fez até o genial Adonias Filho falar da
região como um “pequeno país” de tão singular, remete-nos a um passado nem tão
longínquo em que o isolamento e o receio compunham gravemente a vigência do
povo da vila de Ilhéus. Despovoamento, perigo, inassistência, afastamento e
medo consolidaram as raízes de uma modulação afetiva muito própria de um povo e
que expõe, ainda que em pequena medida, um discreto messianismo que eleva o
temperamento grapiúna a sentimentos cada vez mais extáticos e líricos.
***
Os
limites do espírito baiano estão assinalados na sua inabilidade para o
progresso. Isso que é imputado folcloricamente no país como preguiça, não é, de
fato, a representação de uma falta, como a falta de apreço pelo trabalho,
quando, pelo contrário, o povo baiano sofreu e tem sofrido duras jornadas em
ofícios para a sobrevivência. Trata-se de uma total incompatibilidade psíquica,
fisiográfica. O real da Bahia provém de uma intencionalidade anti-soteriológica
e anti-otimista: o gosto do viver está em tirar proveito da antítese entre
mágica e ceticismo, sem nenhuma pretensão ou inclinação para qualquer sorte de
resolução geral das peripécias em si imbricadas. Não se caminha para nenhum
fim, para nenhum desígnio, deliberação, sentença ou decisão. Antes, retira-se
da vida um aspecto que interliga estética e algo até mesmo de culinária, como
se o feitio terminante do caráter científico não oferecesse gosto algum, como
se a resolutividade progressista não insinuasse um estilo de vida mais
saboroso, sendo o sacrifício da perda de sua fecundidade experiencial e poética
(corte necessário para se conceber o progresso) um valor alto demais. Nada de
ralo, sensabor ou insosso pode jamais despertar interesse ao tipo baiano, pois
a sinuosidade de seu perfil lhe confere uma morfologia de imprecisão e
desamparo cognitivo, própria dos auscultadores e místicos, incapacitando-o para
a grandeza em termos cosmopolitas e científicos.
***
Agora,
quando enfim chegamos ao final deste simples ensaio, podem se levantar as
críticas acerca da proveniência e da superficialidade desta aproximação
intuitiva. Se bem as façam, não há mal algum: tanto melhor. Que apontem,
portanto, o erro ou a vulgaridade que denunciariam, ao contrário do que
vivencio, a artificialidade do que porventura imagino ser um sentimento
natural, íntima experiência baiana! Onde estaria essa baianidade, podem
perguntar, senão no espírito e no poema de alguns grandes literatos? Onde
estaria a baianidade que é do povo, que é das coisas cotidianas, que é do baixo
material corporal e das intrigas, insinceridades, conflitos, amores e repúdios dos
mais pulsantes corações baianos? Onde está o mágico-ceticismo dos simples?
Não
há revelação mais autêntica do que a aparecida no entremeio das modulações de
afetos da massa baiana, em que se insurge o mais vigoroso do mágico-ceticismo
em uma forma peculiar de vida comum, uma espécie de estética da ironia. O
feitio baiano, em seu mais visceral conteúdo, é irônico. De um humor totalmente
particular, de uma conduta que jamais separa a tragédia da comédia, de uma
irreverência que impede com unicidade o caráter geral do baiano de levar a vida
demasiadamente a sério. A baianidade antitética cultua e desmoraliza as coisas
as mais sagradas. Não há provavelmente outro temperamento em que o espírito
carnavalesco poderia melhor se desenvolver, no sentido de uma inversão mais
radical de símbolos, estruturas e figuras do que na fisiografia sensível
baiana, morfologicamente dotada de todo um encantamento mágico e ainda de toda
uma crueza pirrônica que lhe permite o claro-escuro de um movimento
genuinamente irônico. Aí está a grandeza do povo, aí está o lirismo que
transfigura tudo de volta ao povo….
A
transfiguração se vê também na eclosão de seus poetas. E é desta forma que
voltamos a Jorge Amado, mas de uma forma diversa. Em uma carta endereçada ao
lírico em agosto de 1936, o escritor Monteiro Lobato introduz a exposição de
uma verdadeira lição de sensibilidade poética em referência a sua recente
leitura do livro Mar Morto[2]:
Em
novembro do ano passado estive por varias vezes naquele caes, perto da igreja
da Conceição da Praia, vendo os saveiros atracados e os que vinham vindo de
velas abertas - e pensei em você. 'Qualquer dia o Jorge Amado presta atenção e
pinta os dramas que devem existir aqui'. Adivinhei (1936, p.1).
Um
lírico não descreve os fatos ou relata acontecimentos. Um lírico pinta dramas,
no sentido de ser receptáculo e abertura para o florescimento de um problema. E
isto é o drama, algo que é terminantemente não resolvido, talvez até mesmo não
resolvível. Se não há conflito, se não há profunda antítese e tristeza fecunda,
não há riqueza capaz de fazer se afinarem sensibilidade, abertura e poesia, não
há chamado. E a pintura do drama é uma composição toda singular, toda
comprometimento, a qual transfigura a manifestação sensível de todo fundo de vida
de um povo, de seu mais íntimo confronto, em um chamado oculto e misterioso que
desafoga, no gênio poético e em sua poesia, toda a densidade de sua sombra
afetiva. É então no jogo de claro-escuro do poema que o canto inaudível emanado
do mais coberto e imo de um povo volta a si, todo novo (um Canto do dia novo…), todo transfiguração, e se faz mais vida, e
encouraça de lirismo a pele ardente dos baianos até que sua história mesma seja
ainda mais pura e autêntica poesia. Ainda na carta a Jorge Amado, Monteiro
Lobato eleva aos cumes a sua sensibilidade e traz afeto ao peito dos
liricamente delicados (pujantes, entretanto, de vida):
Seus
livros da Baía revelam-me mais que um escritor, que um romancista, que um
artista. Revelam-me uma força da natureza, uma especie de harpa eolea que
ressoa à passagem dos ventos dos dramas da miséria. Daí a especialíssima
impressão que causam - única, inconfundível e tragica. Tragica no sentido grego
da palavra. [...] Difícil definir seus livros, meu caro Jorge. Eles desgarram de
todos os moldes assentes - são livros de dar dor de cabeça aos acadêmicos, aos
brochas, aos seguidores de regras de arte, aos onanistas da forma. Livros
dolorosamente terríveis porque contem verdade demais. E contem verdade demais
porque, como harpa eolea que você é, eles são a propria verdade circulante no
ar como ondas e captadas por uma antena potentissima (1936, p.1).
Uma força da natureza, não um
escritor! Quanta beleza! Quanta percepção! Sendo meramente escritor, não
poderia trazer a verdade viva em obras transfiguradoras, porque as verdades que
ressoam nos ventos em dramas da miséria, as que doem nas cabeças dos onanistas
da forma, não são discursos ou corpúsculos: são a força mesma emanada das
modulações ocultas do temperamento baiano, reveladas apenas a uma aproximação
com extrema abertura, uma aproximação intuitiva, capaz de fazer audível o canto
oracular do rumor mais belo e íntimo. Auscultação imediata ao âmago da antítese
em meio aos frêmitos de todos os mistérios, em meio ao silêncio sagrado da
palavra que gesta e nasce como caminho, verdade e destino. Há sempre um destino
para um grande baiano. E a baianidade é um caminho que perfura as mais
indistintas escuridões, desocultando as flores e as chagas mais belas, as mais
sóbrias.
Para um baiano cujo amor é a fronte e
o lirismo o coração, a Bahia estará sempre miticamente sobreposta a sua pele,
como subscrita, assinatura ao fim de uma poesia. Os martírios e as mortalhas da
compleição mágica e lúcida só enveredam o olhar rumo às margens dos sentidos,
onde reinam êxtase e ironia. Um cético sacramentado, um materialista
feiticeiro, uma contradição, um disparate, um baiano. Orgulho tênue frente a
sua realidade toda onírica. Ardor cálido, mas afável frente a toda crueza
impolida. A baianidade grita como a estampar o solstício brasileiro! Mas é
ainda mais bela como murmúrio breve, como coisa muito custosa de se revelar.
Este é o oráculo baiano, a inclinação que vige em ferida viva à noite. E revela
na aurora a palavra transfigurada, o ocaso de todo desamor.
Salvador, 03/09/2019
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
AMADO,
Jorge. Bahia de todos os santos:
guia de ruas e mistérios. Rio de Janeiro: Record, 1982.
FILHO,
Adonias. Sul da Bahia: chão de
cacau. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.
LOBATO,
Monteiro. [Carta] 23 ago. 1936 [para] AMADO, Jorge. Salvador. 1f. Sobre a recente leitura do livro Mar Morto.
ROCHA,
Firmino. O canto do dia novo.
Salvador: Mensageiro da fé, 1968.
[1]
Música composta e interpretada por Dorival Caymmi.
[2] Optei por
manter a redação original em todas as passagens desta carta.
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