quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

O oráculo baiano


Esboço a uma aproximação intuitiva da baianidade
O feitio baiano, a sua própria compleição é oracular. É um temperamento das coisas, é uma índole da revelação. O baiano não é tipicamente escrutinador, seu gênio não é compatível com nenhuma sorte de ciência. Pelo contrário, seu caráter tem qualquer coisa de erro, de vacilação, de inconstância que o faz inimigo das coisas certas. Essa coisa da baianidade, e que é aquilo que a aproxima das modulações místicas do canto, transforma a fisiografia do humor baiano em um apelo por Geopoesia.
É oracular essa cognição que intimida a tenuidade entre o vigil e o onírico, esse espírito de João Valentão[1], que não precisa dormir para sonhar.
A fisionomia espiritual baiana, com suas dessemelhanças protagonizadas sobretudo pelos espíritos soteropolitano e grapiúna, constitui-se morfologicamente por um estilo de vida mágico-cético. Ora, composta de dois elementos contrários, a estética baiana se desenvolve numa sorte de armadilha antitética em que a experiência mágica se trepida sobre um excelso senso do fugaz. O espírito baiano consegue consolidar o absurdo de um temperamento ao mesmo tempo exuberante e fugidio. Por vezes sublime, por vezes ápice de lucidez, mas sempre imbricado a uma inigualável sensibilidade mágica.
Mestres em viver e usufruir da ilusão, concebem igualmente todos os níveis de seu artifício, como em uma verdadeira cosmogonia das aparências. De certa forma, a baianidade funda e escrutina a mitologia das quimeras em que atua. Tendo herdado a comédia muito trágica dos europeus ibéricos e o humor de magia colossal de indígenas e, mais apropriadamente, de africanos, o feitio baiano apresenta uma tendência burlesca. Perfídia contra as formalidades europeias, impostura na tensão irregular entre si e o indigenismo (entre o medo e a aversão), calor amargurado da triste peripécia africana: tornou-se o temperamento do flerte, do acaso, da secura, mas irremediavelmente de uma profunda e fecunda tristeza que elevou e tem elevado o sentido oracular baiano a suas maiores proezas.
O mágico-ceticismo baiano rumina indefinidamente um canto que desafia o tempo. E todo cantar desvanece sem um profundo sofrer… Por isso a baianidade também se confunde com a arte de amar, na qual a perturbação espiritual de sua antítese subjetiva eleva os ânimos até uma exortação ao sofrimento. Instituto do amor maior, o baiano é discípulo do coração e devoto de suas mortalhas. Inconsequente ou pessimista, entregue ou trágico, manifesta uma abertura para o afeto intemporal: “O tempo que nunca passou./ Sê ele/ Sê o tempo do amor”, disse o poeta-coração. “Marca a palavra com a lágrima do amor” (ROCHA, 1968, p. 69)!
O conflito subjetivo da baianidade permite a edificação de sua estética oracular. Na sua “oracularidade”, as coisas se revelam como num sussurro místico, fonte das mais caras criações. A revelação criativa não é, contudo, nem pode ser, exclusividade de qualquer estilo de vida, senão que é coisa do lirismo geral, ordem atemporal familiar aos grandes do mundo. Entretanto, no caráter baiano há alguma coisa de auscultação, de extrema delicadeza, que o leva a se inclinar intimamente à noite, aos “frêmitos de todos os mistérios” (1968, p. 27), como dizia o amoroso grapiúna Firmino Rocha. Ouve, então, e espera com sua amabilidade a ternura mais distinta, e se torna poeta.
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O principal exemplo da desconjuntura subjetiva do baiano é o desenvolvimento quase paroxístico do marxismo no imaginário local. Como uma cultura tão particularmente mágica poderia se filiar a uma filosofia anti-religiosa? Ao meu ver, o maior representante deste singular conflito íntimo é o escritor Jorge Amado. A oposição categórica de princípios entre um estilo de vida exuberante e vivificante como é o mágico, cheio de sem-sentidos e obscuridades, e outro claro, soteriológico e científico, como é o marxista, sustenta os pesadelos de muitos latinos aproximados do ideário otimista, mas se desenvolveu muito fecundamente na literatura amadiana.
Vemos com clareza o aludido conflito em variados exemplos de sua obra: Mar Morto, Pastores da Noite, Tenda dos Milagres, ABC de Castro Alves ou Terras do Sem Fim. Em todos esses trabalhos há uma descontinuidade mirabolante em que o mágico de repente cede o seu lugar à guerra de classes, à urgência das desigualdades e à perspectiva de uma mudança desestratificante.
Qual seria a conexão simbólica entre toda a mística da relação Yemanjá-Guma, em Mar Morto, marcada sobretudo pela atração total, pelo irremediável da fatalidade mágica, e a ascensão repentina de Lívia com sua brusca tomada de atitude, representação óbvia de um lampejo otimista? O que dizer do desconcerto nascido da dissonância entre o ambiente exuberante e quase-totêmico da Mata de Ilhéus em Terras do Sem Fim, quando confrontada pela dureza materialista da crítica aos privilégios, à desigualdade, o que certamente é a substância toda da continuação narrativa nomeada São Jorge dos Ilhéus?
Como explicar o fulgor lúcido em meio à sombra total e vívida de um Canto de amor à Bahia, quando do alto de sua exaltação, Jorge Amado retrocede a narrativa, como a interromper repentinamente um sonho: “Nem tudo é doce e poesia apenas, e o drama explode nas ruas em enxames de crianças famintas, na multiplicação dos mendigos, na fome em terra tão rica” (1982, p. 62). É uma terrível e implacável contradição! “Nem tudo é doce e poesia apenas”, disse o poeta, o mesmo poeta que exaltou em murmúrio cantado o tremendo do esboroamento mágico-místico: “É doce morrer no mar...”. Tanta riqueza em uma linha! Um dito que mais parece um afeto, tão transcendente e desconcertante que é para o simbólico das palavras. É belo e sério. É doce e irremediável o hálito salgado deste abraço de sereia. Como jamais esta coisa, que é a poesia em si mesma, poderia se opor ao sério, gélido e triste, sendo ela também o desposar de tudo isso junto ao sublime, ao belo e ao extático? Como conviver com fronteiras tão mal traçadas, tão vergonhosas e dissolutas que não despertam outra coisa senão a fantasia e o interesse pela profundidade de um gigantesco (e autêntico) disparate baiano?
Àqueles para quem minhas palavras suscitam o aproximar intuitivo do âmago poético amadiano, convido ainda a uma outra demonstração: toda a contradição do mágico-ceticismo de Jorge Amado pode ser bem apreciada pela história de seu personagem Pedro Archanjo, em Tenda dos Milagres. Suponho que sentirão no aludido papel o verdadeiro sem-jeito, a má explicação, o apelo ao “falso culto” que só um otimista-progressista-científico poderia oferecer ao tentar conciliar racionalmente a sua autenticidade ora mística, ora brutalmente lúcida. Pedro Archanjo falhou em dizê-la, e, na mesma medida, foi bem-sucedido quando a exibiu com esplendor e a fremiu, como determinava seu destino.
          E também penso que assim seja o destino de todos os grandes baianos, como foi o de Jorge Amado: uma coisa de Pedro Archanjo, um mágico-ceticismo mal resolvido que só pode fazer movimentar no espírito um desconforto que vem às vezes como contemplação e choro, às vezes como ação e verbo. E verbo, choro, contemplação e ação se unem em um turbilhão mítico no mais íntimo da alma e decantam, e rubricam, e insinuam qualquer coisa de lágrima, qualquer coisa de angélico, que é um rumor breve sobre os ares da Bahia. Há sempre um destino para um grande baiano. E ele há de sempre o sofrer, de sempre o desejar enterrar no mais fundo sepulcro do tempo. Contudo, e para o seu azar, o mais fundo é sua alma mesma, perdida, como deve ser, em vacilações místicas que brilham na solidão profunda de todo mistério.
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A essência da baianidade é o mágico-ceticismo, tendo a antítese como fonte de fecundidade. O que há de plural não são “baianidades”, no sentido de múltiplas nascentes para modos distintos de ser baiano, excluindo, portanto, qualquer vestígio de continuidade e coincidência entre os modos de sua presença, mas estados mais ou menos intensos e manifestações mais ou menos únicas de um mesmo mágico-ceticismo. Desta forma, obtemos estilos singulares de baianidade. Conseguimos, através desta aproximação, notar as enormes dessemelhanças entre o perfil doce e insuspeito do lirismo grapiúna e a maternal, estrondosa e imensa extensão poética do lirismo soteropolitano. Tudo isto igualmente baianidade, tudo autenticamente oracular. Obviamente, ainda considerando estes dois polos líricos da Bahia, temos que não se limitam exatamente a uma ou duas regiões geográficas, mas são como pontos de convergência para os quais se direcionam os temperamentos essencialmente mágico-céticos em busca de caminhos e de destino.
Que se venha de Belmonte, Curralinho, Itajuípe, Canavieiras, Cachoeira, Santo Amaro, Juazeiro, Irará, Jequié, Barreiras, Feira de Santana ou Vitória da Conquista: o núcleo expositor do desembaraço poético baiano se observa em traços significativos da pluralidade de feitios que compõem o mágico-ceticismo soteropolitano, ou ainda bem o grapiúna. Em verdade, a baianidade soteropolitana, em especial, é como um encontro fraternal dos mais diversos estilos baianos, em que o espírito interiorano eclode e desemboca poeticamente em meio ao mar gigante da cidade da Bahia. Salvador, liricamente falando, é um abraço maternal de enorme gravidade. Não é exatamente centro cultural, é muito além. Esta cidade é o templo mágico em que irradiam os cantos mais profundamente líricos da Bahia. É o espaço vivo em que se incorporam e se manifestam os mais altos chamados interiores.
Por outro lado, o “grapiunismo” é talvez a expressão mais autêntica de uma baianidade singular. Entre os grandes estão desde belas metamorfoses morfológicas (no fim, representantes de toda baianidade), como Jorge Amado e Adonias Filho, passando por Sosígenes Costa, Telmo Padilha, Hélio Pólvora, Cyro de Mattos, Jorge Medauar, Valdelice Pinheiro e muitos outros do passado e do presente de quem acabaríamos não fazendo justiça, até o que identifico como a maior revelação do espírito grapiúna: Firmino Rocha. Este grande amoroso, místico, ingênuo até o âmago do poema, sóbrio até os ossos de seu lirismo, provavelmente jamais será considerado como protagonista da literatura baiana. Entretanto, não há verdadeira sensibilidade que não sinta um embaraço vertiginoso após o contato com a obra, ápice da delicadeza, do Poeta Firmino. Firmino Rocha é o verdadeiro poeta-coração, uma ferida aberta cuja ternura revolucionou o grapiunismo, expressão de seu cume. Nenhuma de suas criações ocultou o mágico-ceticismo manifestadamente singular do espírito grapiúna. Há sobriedade, há delicadeza, há crua inclinação para a auscultação lírica, há a mais desenvolvida mística da poesia local, há profundo apelo social, há uma ingenuidade quase onírica que se expressa como saudade e recordação dos seus “luares de maio” e de sua “Rosinha”.
O grapiunismo é um modo de baianidade cuja peculiaridade é a proeminência do trágico, cultivado no mais profundo da alma regional desde os conflitos entre vila de Ilhéus-índios Aimorés-holandeses até o escândalo sangrento da, mais apropriadamente, formação grapiúna por meio do fenômeno do “chão de cacau”. Assim Adonias Filho nomeou a particularidade do sul da bahia em seu Sul da Bahia: chão de cacau (uma civilização regional). O regionalismo grapiúna é notório, e não de agora. O espírito quase megalomaníaco e pretensioso, que fez até o genial Adonias Filho falar da região como um “pequeno país” de tão singular, remete-nos a um passado nem tão longínquo em que o isolamento e o receio compunham gravemente a vigência do povo da vila de Ilhéus. Despovoamento, perigo, inassistência, afastamento e medo consolidaram as raízes de uma modulação afetiva muito própria de um povo e que expõe, ainda que em pequena medida, um discreto messianismo que eleva o temperamento grapiúna a sentimentos cada vez mais extáticos e líricos.
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Os limites do espírito baiano estão assinalados na sua inabilidade para o progresso. Isso que é imputado folcloricamente no país como preguiça, não é, de fato, a representação de uma falta, como a falta de apreço pelo trabalho, quando, pelo contrário, o povo baiano sofreu e tem sofrido duras jornadas em ofícios para a sobrevivência. Trata-se de uma total incompatibilidade psíquica, fisiográfica. O real da Bahia provém de uma intencionalidade anti-soteriológica e anti-otimista: o gosto do viver está em tirar proveito da antítese entre mágica e ceticismo, sem nenhuma pretensão ou inclinação para qualquer sorte de resolução geral das peripécias em si imbricadas. Não se caminha para nenhum fim, para nenhum desígnio, deliberação, sentença ou decisão. Antes, retira-se da vida um aspecto que interliga estética e algo até mesmo de culinária, como se o feitio terminante do caráter científico não oferecesse gosto algum, como se a resolutividade progressista não insinuasse um estilo de vida mais saboroso, sendo o sacrifício da perda de sua fecundidade experiencial e poética (corte necessário para se conceber o progresso) um valor alto demais. Nada de ralo, sensabor ou insosso pode jamais despertar interesse ao tipo baiano, pois a sinuosidade de seu perfil lhe confere uma morfologia de imprecisão e desamparo cognitivo, própria dos auscultadores e místicos, incapacitando-o para a grandeza em termos cosmopolitas e científicos.
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Agora, quando enfim chegamos ao final deste simples ensaio, podem se levantar as críticas acerca da proveniência e da superficialidade desta aproximação intuitiva. Se bem as façam, não há mal algum: tanto melhor. Que apontem, portanto, o erro ou a vulgaridade que denunciariam, ao contrário do que vivencio, a artificialidade do que porventura imagino ser um sentimento natural, íntima experiência baiana! Onde estaria essa baianidade, podem perguntar, senão no espírito e no poema de alguns grandes literatos? Onde estaria a baianidade que é do povo, que é das coisas cotidianas, que é do baixo material corporal e das intrigas, insinceridades, conflitos, amores e repúdios dos mais pulsantes corações baianos? Onde está o mágico-ceticismo dos simples?
Não há revelação mais autêntica do que a aparecida no entremeio das modulações de afetos da massa baiana, em que se insurge o mais vigoroso do mágico-ceticismo em uma forma peculiar de vida comum, uma espécie de estética da ironia. O feitio baiano, em seu mais visceral conteúdo, é irônico. De um humor totalmente particular, de uma conduta que jamais separa a tragédia da comédia, de uma irreverência que impede com unicidade o caráter geral do baiano de levar a vida demasiadamente a sério. A baianidade antitética cultua e desmoraliza as coisas as mais sagradas. Não há provavelmente outro temperamento em que o espírito carnavalesco poderia melhor se desenvolver, no sentido de uma inversão mais radical de símbolos, estruturas e figuras do que na fisiografia sensível baiana, morfologicamente dotada de todo um encantamento mágico e ainda de toda uma crueza pirrônica que lhe permite o claro-escuro de um movimento genuinamente irônico. Aí está a grandeza do povo, aí está o lirismo que transfigura tudo de volta ao povo….
A transfiguração se vê também na eclosão de seus poetas. E é desta forma que voltamos a Jorge Amado, mas de uma forma diversa. Em uma carta endereçada ao lírico em agosto de 1936, o escritor Monteiro Lobato introduz a exposição de uma verdadeira lição de sensibilidade poética em referência a sua recente leitura do livro Mar Morto[2]:
Em novembro do ano passado estive por varias vezes naquele caes, perto da igreja da Conceição da Praia, vendo os saveiros atracados e os que vinham vindo de velas abertas - e pensei em você. 'Qualquer dia o Jorge Amado presta atenção e pinta os dramas que devem existir aqui'. Adivinhei (1936, p.1).
Um lírico não descreve os fatos ou relata acontecimentos. Um lírico pinta dramas, no sentido de ser receptáculo e abertura para o florescimento de um problema. E isto é o drama, algo que é terminantemente não resolvido, talvez até mesmo não resolvível. Se não há conflito, se não há profunda antítese e tristeza fecunda, não há riqueza capaz de fazer se afinarem sensibilidade, abertura e poesia, não há chamado. E a pintura do drama é uma composição toda singular, toda comprometimento, a qual transfigura a manifestação sensível de todo fundo de vida de um povo, de seu mais íntimo confronto, em um chamado oculto e misterioso que desafoga, no gênio poético e em sua poesia, toda a densidade de sua sombra afetiva. É então no jogo de claro-escuro do poema que o canto inaudível emanado do mais coberto e imo de um povo volta a si, todo novo (um Canto do dia novo…), todo transfiguração, e se faz mais vida, e encouraça de lirismo a pele ardente dos baianos até que sua história mesma seja ainda mais pura e autêntica poesia. Ainda na carta a Jorge Amado, Monteiro Lobato eleva aos cumes a sua sensibilidade e traz afeto ao peito dos liricamente delicados (pujantes, entretanto, de vida):
Seus livros da Baía revelam-me mais que um escritor, que um romancista, que um artista. Revelam-me uma força da natureza, uma especie de harpa eolea que ressoa à passagem dos ventos dos dramas da miséria. Daí a especialíssima impressão que causam - única, inconfundível e tragica. Tragica no sentido grego da palavra. [...] Difícil definir seus livros, meu caro Jorge. Eles desgarram de todos os moldes assentes - são livros de dar dor de cabeça aos acadêmicos, aos brochas, aos seguidores de regras de arte, aos onanistas da forma. Livros dolorosamente terríveis porque contem verdade demais. E contem verdade demais porque, como harpa eolea que você é, eles são a propria verdade circulante no ar como ondas e captadas por uma antena potentissima (1936, p.1).
          Uma força da natureza, não um escritor! Quanta beleza! Quanta percepção! Sendo meramente escritor, não poderia trazer a verdade viva em obras transfiguradoras, porque as verdades que ressoam nos ventos em dramas da miséria, as que doem nas cabeças dos onanistas da forma, não são discursos ou corpúsculos: são a força mesma emanada das modulações ocultas do temperamento baiano, reveladas apenas a uma aproximação com extrema abertura, uma aproximação intuitiva, capaz de fazer audível o canto oracular do rumor mais belo e íntimo. Auscultação imediata ao âmago da antítese em meio aos frêmitos de todos os mistérios, em meio ao silêncio sagrado da palavra que gesta e nasce como caminho, verdade e destino. Há sempre um destino para um grande baiano. E a baianidade é um caminho que perfura as mais indistintas escuridões, desocultando as flores e as chagas mais belas, as mais sóbrias.
          Para um baiano cujo amor é a fronte e o lirismo o coração, a Bahia estará sempre miticamente sobreposta a sua pele, como subscrita, assinatura ao fim de uma poesia. Os martírios e as mortalhas da compleição mágica e lúcida só enveredam o olhar rumo às margens dos sentidos, onde reinam êxtase e ironia. Um cético sacramentado, um materialista feiticeiro, uma contradição, um disparate, um baiano. Orgulho tênue frente a sua realidade toda onírica. Ardor cálido, mas afável frente a toda crueza impolida. A baianidade grita como a estampar o solstício brasileiro! Mas é ainda mais bela como murmúrio breve, como coisa muito custosa de se revelar. Este é o oráculo baiano, a inclinação que vige em ferida viva à noite. E revela na aurora a palavra transfigurada, o ocaso de todo desamor.

Salvador, 03/09/2019



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMADO, Jorge. Bahia de todos os santos: guia de ruas e mistérios. Rio de Janeiro: Record, 1982.
FILHO, Adonias. Sul da Bahia: chão de cacau. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.
LOBATO, Monteiro. [Carta] 23 ago. 1936 [para] AMADO, Jorge. Salvador. 1f. Sobre a recente leitura do livro Mar Morto.
ROCHA, Firmino. O canto do dia novo. Salvador: Mensageiro da fé, 1968.



[1] Música composta e interpretada por Dorival Caymmi.
[2] Optei por manter a redação original em todas as passagens desta carta.

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